Uma maioria parlamentar de esquerda, unida no apoio a um governo socialista, é um facto inédito da nossa democracia, que tem motivado análises sobre a possibilidade de uma consensualização socialista e progressista à esquerda que funcione como alternativa ao consenso conservador e liberal que existe à direita, ou sobre a transformação que pode provocar na extrema-esquerda, moderando-a, ou no próprio PS, encostando-o à esquerda.
Tem-se prestado menos atenção à decorrência imediata desta maioria: a inédita ausência de uma oposição de esquerda a um governo.
Nunca antes, na nossa democracia, um governo tinha contado com o apoio mais ou menos expresso, mais ou menos tímido, de toda a esquerda parlamentar, mesmo da mais radical. Esta circunstância tem consequências no funcionamento do nosso sistema político que merecem ser registadas.
Em primeiro lugar, este é o primeiro governo que não sofre a pressão da rua, instrumentalizada que sempre foi pelos partidos à sua esquerda através de sindicatos e associações. Nenhum outro primeiro-ministro pôde organizar política e mediaticamente a sua governação sabendo de antemão que não teria de lidar com a rua. Ninguém impede o PSD e o CDS de convocar manifestações ou incentivar greves, bem o sabemos, mas esse não é o seu estilo ou o seu eleitorado. Ter o apoio de toda a esquerda permite assim criar uma ilusão de paz social, uma narrativa que, durante algum tempo, tem um efeito autossuficiente e que é capaz de seduzir até o eleitorado conservador que aprecia a ordem.
Em segundo lugar, a ausência de rua, de greves, de pressões sindicais, diminui a atenção noticiosa sobre os efeitos negativos das políticas. Não é a mesma coisa para um jornal cobrir as declarações de um líder da oposição dizendo que há cortes nas escolas e hospitais ou cobrir as declarações de um sindicato ou associação, vítimas dos mesmos cortes, denunciando-os. Não tem o mesmo efeito noticioso ouvir um deputado da oposição ou ouvir o presidente de uma associação de moradores ou utentes, quase sempre afetas a partidos de esquerda mas aparentemente representativas, a lamentar-se, a mostrar o seu caso pessoal. Ter o apoio de toda a esquerda permite assim adiar o conhecimento da dimensão das realidades menos positivas, prolongando a ideia de que tudo vai bem.
Em terceiro lugar, este é o primeiro governo que não sofre os ataques da oposição militante, daquela que nunca entra em contradição porque nunca decidiu nada, nunca governou nada, e que, por isso, faz uma pressão demagógica, populista, diária, prometendo o shangri-la ao virar da esquina. Este Governo não tem de lidar com as promessas mirabolantes, com as exigências descabidas, com a linguagem populista. Ter o apoio de toda a esquerda permite assim um debate político mais sereno, menos demagógico, o que favorece quem governa.
Em quarto lugar, este arranjo parlamentar permite centrar o debate político nos anos do resgate, anos de chumbo para os portugueses, e daí partir para a comparação com os tempos presentes. Aquilo que une a maioria parlamentar é a rejeição de PSD e CDS e por isso todo o debate é para aí canalizado. Ora, o debate comparativo entre governos, sobretudo quando se compara um governo anterior que governou sob resgate e um Governo atual que herda um país em recuperação económica, tende a favorecer quem está. Ter o apoio de toda a esquerda permite assim ao Governo fugir da discussão das suas políticas, estando em permanente comparação com os tempos da troika.
Em quinto lugar, este é o primeiro governo que tem de lidar com uma oposição mais ou menos homogénea, não tendo de enfrentar críticas contraditórias, que obrigam a estratégias paralelas de defesa. Todos os anteriores governos tiveram de criar estratégias para responder quer aos ataques da extrema-esquerda quer aos ataques das forças moderadas, o que obrigava, do ponto de vista político e mediático, a um esforço suplementar. Ter o apoio de toda a esquerda permite assim ao Governo concentrar a sua defesa a um conjunto delimitado e mais previsível de ataques.
No seu conjunto, estas consequências, que me limito a constatar sem me lamentar, favorecem uma certa hegemonia mediática do Governo e obrigam os partidos à direita, desacompanhados que estão da oposição à esquerda, a atualizar os seus métodos e estratégias, num fenómeno politicamente muito interessante e que não tem merecido grande reflexão.
(Artigo publicado na VISÃO 1271, de 13 de julho de 2017)