
Há uma velha piada que circulava pelos corredores de Tin Pan Alley, a fábrica de canções nova-iorquina do início do século 20. Letristas e compositores reuniam-se numa linha de produção em série, construindo canções à medida do solicitado.
A pergunta era (é sempre) “o que é que nasce primeiro, a letra ou a música?”. A maioria responde que surgem ambas em simultâneo. Eu diria que é primeiro a música. Outros diriam que é primeiro a letra (o Rui Veloso e o João Gil, por exemplo, constroem melodias por cima de letras preexistentes). Ali em Tin Pan Alley a resposta a essa questão, que intriga muitos curiosos acerca do processo criativo, era pragmática: “o telefonema”. Havia que dar resposta imediata a solicitações muito específicas, de cantores ávidos do próximo êxito.
A mim, é a coisa que mais me intriga. De onde vêm as melodias? Onde é que andam os raios dos refrãos? Como é que é possível o Hey Jude? Não tem nada a ver com simplicidade ou complexidade.
É a questão que sempre me intrigou, aquilo que encaminhou toda a minha vida para que hoje passe grande parte das minhas boas horas a dar cabeçadas nas paredes à procura de palavras e melodias. Mesmo a dormir. Mesmo a guiar, no chuveiro, nas “férias”. A minha vida resume-se a tentar. Tentar constantemente. É coisa que dá para fazer em silêncio. Em segredo. Dá para fazer enquanto se tenta estar mais ou menos nas conversas. As pessoas falam sobre o Trump ou sobre o anticiclone dos Açores, mostram vídeos dos filhos a fazer habilidades, discorrem sobre glúten e religião e uma pessoa anui com a cabeça e diz “depende” e no fundo está é a tentar rimar paixão com coração e a cantarolar melodias naquilo a que o Chico Buarque chama de “Rádio-cabeça”. É um processo que exige que se entre nele com a vida toda e que é absolutamente misterioso. Umas vezes as músicas aparecem feitas, vindas sabe-se lá donde. Outras demoram oito anos. Há melodias que aparecem como que a cantarolarem-se a elas próprias e uma pessoa não pode olhar para elas muito de frente, como quem tenta agarrar uma borboleta, porque senão elas fogem envergonhadas. Não se pode tentar agarrar, tem que se esperar que elas pousem. Já me aconteceu precisar de uma palavra para fechar uma música e essa palavra apareceu-me do nada umas semanas depois, e eu não sabia o significado, tive que ir ver ao dicionário. E era mesmo a palavra que eu precisava. Já tinha desistido.
Não se inventa nada, descobre-se. Destapa-se. Perguntaram ao Leonard Cohen de onde vinham as boas canções e ele disse que se soubesse, iria lá mais vezes. Inquirido sobre a dificuldade da tarefa, o bardo canadiano descreveu que soube que se tinha metido numa alhada das grandes ao meter-se nesta vida quando deu por si a rastejar, de cuecas, no chão de alcatifa de um quarto de hotel à procura de uma palavra para um verso duma canção.
A pergunta “letra ou música primeiro” é daquelas que aparecem em todas as entrevistas que me fazem e à qual é muito difícil de responder.
Mas o processo criativo, no meu caso, não tem nada a ver com uma pessoa sentar-se para escrever. Não tem nada a ver com ter uma ideia para uma música. Não tem nada a ver com “querer” escrever uma música. O Sammy Cahn, letrista de grande clássicos americanos como por exemplo Come Fly With Me, dizia que não era ele que escrevia as letras, que eram as letras que o escreviam a ele. O Michael Jackson dizia igual. “Don’t write de music, let the music write itself”, na mesma entrevista em que contou que esteve meses e meses à volta da linha de baixo do Billy Jean. Parece tão simples. O Paul McCartney diz que está convencido que as canções já existem e que há pessoas que têm “antenas”, redes especiais para as apanhar. O Lenny Kravitz garante: “it’s floating out there, if you don’t put it down somebody else might”.