Tal como eu, na semana passada o País ficou em choque com a notícia da morte de Susana Gravato, vereadora da Câmara Municipal de Vagos. Para mim, apenas Susana Gravato, a colega advogada, dos primeiros anos de advocacia, de quem sempre guardei o sorriso doce e o trato afável e cordial.
Não éramos próximas, nem as melhores amigas, mas éramos amigas. Sempre nos demos bem. Vi a notícia ao final da tarde de terça-feira, nada se sabendo, na altura, sobre as causas da morte, havendo apenas a informação de que tinha sido encontrada em paragem cardiorrespiratória. Foi um murro no estômago.
Só me ocorria que, perante situações como esta, perante a morte sem aviso, somos nada. Passamos os dias num corrupio sem ter tempo para nada, tantas vezes sem tempo para cuidar de nós ou estar mais um bocadinho com aqueles que amamos. Tantas vezes, demasiadas vezes, o trabalho é a nossa principal preocupação. Não nos permitimos errar. Não nos permitimos parar. Temos de estar sempre a dar o máximo, como que a justificar que merecemos aquele emprego, ou aquela função, aquele lugar. Se for mulher, então, multiplique-se tudo isto por três, no mínimo.
Quem tem filhos, então, não sabe sequer para onde se virar. Liga o “piloto automático” às 7h da manhã e só o desliga perto da meia-noite (num dia bom). Pelo meio, os miúdos ficaram na escola (ou escolas), foram-se buscar ao ATL, à piscina, ao basquetebol, ao futebol, verificou-se a mochila, os trabalhos de casa, fez-se o jantar, arrumou-se a cozinha, preparou-se o dia seguinte. E no meio deste corrupio, mesmo durante a semana, há aqueles que apenas saem da escola diretos para casa, onde passam horas a jogar PlayStation ou a ver vídeos no YouTube ou no TikTok, para muitos a única ligação a uma espécie de mundo, quando à sua volta continuam no corrupio. O que até nos deixa aliviados. Porque estão entretidos.
Não é a primeira vez que isto me acontece, e presumo que também não seja a única pessoa a quem acontece. Cada vez que morre alguém mais jovem, “cai-me a ficha” e questiono-me sempre se valerá mesmo a pena tudo isto, toda esta correria, todo o tempo que deixo de passar com a minha família, as horas sem dormir, quando, de repente, sem qualquer aviso, tudo se acaba. Faço uma série de planos mentais para ter mais tempo para mim e para os meus, que nunca deixam de ser isso mesmo, planos.
Oportunidade para mudar
Mas a manhã de quarta-feira trouxe-nos um dado novo acerca da morte da Susana. Ficámos a saber que ela tinha sido alvejada, com uma arma, pelo próprio filho, de 14 anos. E para esta notícia ninguém estava preparado. Eu não estava, pelo menos. Perante esta tragédia, cada pessoa quis encontrar uma explicação para o que podia ter levado um miúdo de 14 anos a alvejar a própria mãe com uma arma de fogo. Acho que, no fundo, haver um motivo, uma explicação, nos apaziguaria de alguma forma. Porque nos ajudaria a entender. Mas esse apaziguamento não veio.
Não querendo generalizar, e podendo nada ter a ver com esta tragédia, é importante que se perceba isso, a verdade é que, e ainda que tentemos fazer de conta que não nos apercebemos, algo de grave se passa com as nossas crianças, e com os nossos filhos, e não estamos a ser capazes de lidar bem com isso. E talvez este seja o momento de o assumirmos. Talvez seja a nossa oportunidade.
Ontem, a minha sobrinha mais velha, estudante do 6º ano de Medicina, explicava-me que o cérebro dos mais pequenos não é igual ao nosso, nem sequer ao dela. E que todo o mecanismo de “recompensa cerebral” está “danificado”, com implicações que são preocupantes.
Não é só o tempo que as crianças passam na internet, ou nos jogos da PlayStation, alguns deles de uma violência extrema, que está a afetá-lo. É, sobretudo, o tempo que não estão a passar connosco.

O trabalho suga-nos! Suga-nos tudo. Está a sugar as nossas vidas. E quando não estamos a trabalhar, finalmente temos um bocadinho livre, só queremos ficar quietos, a fazer nada. Andamos exaustos e sem paciência. E os miúdos, que tantas vezes, demasiadas vezes, deixamos em autogestão nas redes, estão a fugir-nos.
Não é novidade que não é fácil ter filhos nos dias de hoje. Aliás, acho que desde há algum tempo que é assim. Apesar de Portugal ser um dos países com legislação mais avançada em matéria de conciliação entre a vida profissional e a familiar, esta continua a ser uma das causas de maior preocupação de trabalhadoras e trabalhadores, que todos os dias fazem maratonas e várias acrobacias para equilibrar tudo. É uma das principais causas de stresse e de ansiedade. Além disso, têm de lidar com a culpa. A culpa de, por um lado, não serem pais suficientemente bons e presentes, por trabalharem demasiado e, por outro lado, a culpa de não estarem a corresponder às expectativas a seu respeito no trabalho, quando têm de se ausentar para dar apoio aos filhos. É este o dilema em que muitas famílias vivem.
Acresce que os horários escolares não são pensados de harmonia com os horários de trabalho dos pais, até porque os horários de trabalho dos pais são muitas vezes prolongados, e as escolas também não conseguem dar resposta a tudo.
Prevenir o impacto
Ainda há poucos dias, entre 6 e 11 de outubro, decorreu a Semana da Saúde Mental, assinalada, um pouco por todo o País com os mais diversos eventos, iniciativas, workshops. Segundo dados do Serviço Nacional de Saúde, 20% das crianças e dos adolescentes têm, pelo menos, uma perturbação mental. Em Portugal, quase 31% dos jovens têm sintomas depressivos, a maioria moderados ou graves. Estes números devem inquietar-nos.
Apesar de já se ir falando qualquer coisa, a verdade é que a saúde mental continua a ser um tabu, quando devia ser um tema sobre o qual se deve falar abertamente, sem receios nem preconceitos. E falar de saúde mental também deve ser falar de prevenção, pois está visto que a médio prazo podemos ter milhares de jovens com problemas causados pela exposição excessiva a ecrãs e aos vídeos de três segundos.
Ainda que tentemos fazer de conta que não nos apercebemos, algo de grave se passa com as nossas crianças, e com os nossos filhos,e não estamos a ser capazes de lidar bem com isso. E talvez este seja o momento de o assumirmos
Sim, isto vai ter um impacto. Mais cedo ou mais tarde. Qual? Temos mesmo de saber para poder, em tempo e de forma apropriada, ter as respostas necessárias e adequadas. Para as crianças, mas também para os pais.
Mas nada disto será suficiente se não formos capazes de mudar a forma como nos relacionamos com o trabalho. Voltar a estabelecer limites entre o trabalho e o lar. É impensável que, com todo o avanço tecnológico dos últimos 100 anos, nos conformemos, enquanto sociedade, em continuar a ter as mesmas oito horas diárias de trabalho, ou mais. Porque, na verdade, e por força do dito avanço tecnológico, estamos a levar o trabalho para casa, aumentando o tempo de trabalho e usando o tempo que devia ser de descanso ou lazer para trabalhar.
Ou paramos e mudamos a forma como nos relacionamos com o trabalho, ou nos destruímos.
Que desta tragédia resulte, ao menos, alguma reflexão séria, seguida de ação. Que tudo isto possa ter servido para mudar alguma coisa. Para fazermos algo diferente.
Nada poderá trazer a Susana de volta e, independentemente do que tenha realmente acontecido, ela irá fazer uma enorme falta ao marido, aos pais e aos filhos. Sim, aos filhos, a ambos.
Entretanto, para quem já viu a minissérie Adolescência, este é um bom momento para a rever. Quem ainda não viu, não deixe de ver.
Que aquela família possa ter forças para se reerguer depois disto tudo.
E, já agora, nós também.