Sabemos das virtudes e também das potenciais fragilidades da democracia, mormente em tempos de distopia e de desigualdades sociais e económicas. Mas, apesar de irem grassando a demagogia, a polarização, o egoísmo e a indiferença, vamos teimando em acreditar que o sentido de comunidade, a equidade e a confiabilidade serão as âncoras maiores para que a vida continue a ter um propósito(s), se mantenha um entusiasmo focado e se preserve, “contra todas as evidências em contrário, a alegria” (verso seminal de Manuel Gusmão).
Esse sentimento de pertença, o respeito pela diversidade e a relação de transparência e previsibilidade com o outro (sabermos com quem podemos contar) são faróis preciosos neste mar não poucas vezes revolto, tempestuoso e nevoento em que navegamos. Se soubermos quem somos, o que nos singulariza/diferencia e a quem estamos ligados, saberemos o que temos de fazer, preconizava o filósofo grego Epicteto.
Mas para lá do que se tem de fazer – por imperativo moral, dever cívico ou obrigação profissional – está a forma como se faz, o modo como percecionamos, atentamos e tratamos (ou não d’) o outro. E aí entram o cuidado e a empatia como ingredientes centrais de uma ética e de uma cultura relacional, social e organizacional. Sem eles não há uma sólida e coerente democracia, no sentido da sua plena concretização, isto por mais resoluções, leis, regulamentos e normas que se promulguem – ou seja, o cuidado e a empatia são alicerces e não coberturas, e estão a montante de ideologias e sistemas político-partidários (e não a jusante).
São várias as vozes que hoje associam a fragilidade da democracia também a um défice de cuidado. Por mais que apregoemos o contrário, ainda não aprendemos a coexistir com a incrível diversidade humana, sobretudo a que não conhecemos, para lá da esfera familiar e do círculo de amigos e colegas
Até recentemente – Carol Gilligan já sublinhava esta ideia nos anos 80, ao defender uma “ética do cuidado” –, os modelos de ética propostos foram fixados por homens que pensaram em fundamentos éticos para o melhor viver entre outros homens com referência aos direitos dos outros, isto é, uma ética baseada na lei. Mas na relação com o outro há todo um território de cuidados invisíveis que são do domínio da afinação do olhar e da atenção, que se inscrevem numa malha fina e sensível de pequenos gestos e epifanias – não técnicos, não lógicos, não normalizados, não certificados, não legisláveis – que desenham e reinventam os dias. Essa preciosa sementeira não fica registada, não se parametriza, não se quantifica, porque a sua natureza não se compadece com tal visão. Porque o cuidado é um conceito vazio de representação, não podemos “colocá-lo à nossa frente” para o calcular.
Na vertente profissional, isso aplica-se a todas as áreas: da medicina à educação, do serviço social à justiça, da ciência à cultura e às artes. O termo “cuidar” deriva da palavra latina cogitare (“pensar”), na aceção de “prestar atenção”, “ser solícito”. Mas há, desde logo, uma distinção essencial: uma coisa é estabelecer, como pressuposto, a ética e o cuidado como fundamento da prática profissional; outra é encarar esta última como base/ponto de partida para a ética e o cuidado. E essa diferença é absolutamente crucial.
Terá de haver, a um nível primário, um prévio respeito pela natureza humana (um cuidado com), em vez de uma ética e de um cuidado perfilados em função dos contextos e das funcionalidades (cuidado de). É desse sentido do cuidar que o nosso tempo continua carente. De um cuidado primordial e universalista que exprima a diversidade de possibilidades de ser-no-mundo, incluindo-se aí a dimensão intelectual, a afetiva e a própria praxis, o qual deve constituir um pressuposto incontornável da própria moral e da ética profissional. O cuidar, o ter cuidado enquanto solo ético.
Para isso, será preciso aprender a arranjar o coração pelo(s) outro(s) – desde logo, no útero, em casa, na rua, na escola, no local de trabalho –, como nos lembra Saint-Exupéry no célebre diálogo entre a raposa e o Principezinho. Mesmo que isso implique um confronto com dúvidas, dificuldades e ideias feitas e antigas subjacentes às problemáticas e aos dilemas comunitários e profissionais. Porque a expressão “cuidado” ou “ética do cuidado”, por mais trivial e gasta que possa parecer (de tão comum em artigos e discursos), encerra um sentido de responsabilidade – não seremos sempre responsáveis por aquilo que cativamos? – e dignidade essenciais ao ser pessoa.
Mas nem sempre o facto de se responder como se deve a uma determinada situação equivale a tudo o que se pode fazer nessa mesma situação. Uma lógica do dever (em função da sua aplicação funcional e restritiva) e o cumprimento das regras de etiqueta e das boas maneiras nem sempre são suficientes. Isto para que a nossa presença não se limite a um estar, mas contenha a densidade e a autenticidade do ser, e o que se pode fazer seja cada vez mais concordante com o que se deve fazer.
O desafio mais “exigente”: um respeito incondicional pelo outro nas suas liberdade, dignidade e diferença, uma consideração pelas suas fragilidades e uma valorização das suas potencialidades. O que implica uma relação dialógica (a empatia de calçar os sapatos do outro, diferente de compaixão ou de bondade) para assim nomeá-lo (trazê-lo à existência, como postula Gusdorf), escutá-lo e dar-lhe a palavra, acolhendo-o e reconhecendo-o.
Reportando à cultura, um exemplo frequente: uma coisa é inclusão e outra o acesso. Abrir a porta ao outro e fazê-lo entrar num espaço cultural é fundamental, mas depois não se pode fazê-lo sentir como se fosse um corpo estranho. E é esse degrau-falha gigante que ainda nos vai faltando galgar, para que, através dessa prática diária, possamos atingir um outro patamar – como acreditava Aristóteles –, em que esse hábito esteja já tão enraizado e fortalecido que passe a ser mais instintivo do que uma decisão consciente. Isso é plantar a invisibilidade.
Daí que nas dinâmicas culturais seja vital dar lugar à revolução da horizontalidade da relação. Preservar também um tempo para a dimensão do ser-estar no espaço vivido, para lá “apenas” do fazer no espaço produzido. Isso traduz-se em teias de proximidade e espessuras próprias, na curiosidade, na escuta ativa, nas partilhas, em redes de circulação e intensificação dos afetos, na atenção ao outro, não necessariamente “contaminados” por objetivos apenas profissionais/laborais. Estas práticas não devem ser dissociadas dos modos de produção cultural, privilegiando-se assim também uma temporalidade informal (não pragmático-funcional ou utilitarista) para uma maior ecologia afetiva e empática.
Para o estadista grego Péricles, amar a cidade (e não apenas ter ideias e ser eloquente a expô-las) era uma condição sine qua non para a gerir politicamente: desejar viver numa comunidade onde ninguém seja desconsiderado nem perseguido. São várias as vozes que hoje associam a fragilidade da democracia também a um défice de cuidado. Por mais que apregoemos o contrário, ainda não aprendemos a coexistir com a incrível diversidade humana, sobretudo a que não conhecemos, para lá da esfera familiar e do círculo de amigos e colegas. Provoca-nos estranheza, medo, desconfiança, incerteza, e deixa-nos num espartilho.
Somos todos únicos e é esse o nosso maior denominador comum, mas separados somos fios soltos numa emaranhada meada. Entrelaçar é preciso. Vem-me à memória uma frase-imagem de Irene Vallejo: “Se nos aproximarmos dos olhos de outro, ver-nos-emos a espreitar da varanda do seu olhar.” Porque existir é muito mais do que viver.