Lisboa é hoje uma cidade a duas velocidades: a do postal turístico e a da vida real. Aos visitantes e turistas vende-se a luz dourada sobre o Tejo, o charme decadente das colinas e a promessa de autenticidade. Aos moradores sobra o caos: trânsito, poluição visual, tuk-tuks a fazer de guias improvisados, TVDE a seguir cegamente o GPS e políticos a debitar frases redondas sem resolver nada. O que mais me incomoda é a sensação de que vivemos sempre no improviso, como se Lisboa fosse um palco para experiências em vez de uma capital europeia com responsabilidades sérias.
Quando é que aparece um autarca com coragem para fechar grande parte do trânsito no centro da cidade, a começar pela Avenida da Liberdade? Nem que seja apenas aos domingos, para devolver aos lisboetas o velho Passeio Público. Não vai prejudicar o comércio, nem os restaurantes, nem vai dificultar o acesso aos hotéis ou aos espetáculos das Portas de Santo Antão, do Coliseu ou do Politeama. A Avenida da Liberdade tem duas vias laterais, onde pode circular o trânsito essencial, se a via central estiver vedada ao tráfego pelo menos um dia por semana.
Eco do terramoto
O exemplo mais grave, porém, é o risco sísmico. Todos sabemos – e fingimos não saber – que estamos em cima de uma das falhas mais críticas da Europa. Em 1755, Lisboa foi quase varrida do mapa. Hoje, em 2025, que garantias temos de que não se repetirá? Falam-nos de planos especiais, de avisos por SMS, de simulacros, mas basta olhar para os prédios velhos, para as ruas estreitas, para a circulação caótica, para perceber que, se a terra tremer a sério, o caos instala-se em segundos.
Lisboa é linda, mas continua frágil. E enquanto discutimos ciclovias, tuk-tuks e cartazes eleitorais – e bem – não podemos esquecer que a cidade vive assente quase em estacas, num “logo se vê” perigoso e num improviso que pode custar vidas, mesmo quando o alerta é apenas um apagão como o de 28 de abril. Pelo menos, agora parece que toda a gente já tem um rádio a pilhas e pilhas de substituição em casa.
Lisboa é governada como se fosse uma startup e casa de acolhimento apenas para nómadas digitais e investidores: muitas ideias, pouca execução, ainda menos responsabilidade
E a água?
Quanto às inundações, está em andamento a construção dos túneis do Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL), que inclui bacias de retenção e infiltração e o reforço da rede de saneamento existente. São obras necessárias e visíveis em vários pontos da cidade, da Avenida da Liberdade ao Beato. Medidas que podem mitigar os impactos das alterações climáticas e que deviam ser regra e não exceção. É uma boa medida, vamos ver se resulta.
Mas nem tudo vem da Natureza. Muito do que nos envergonha é obra nossa. O aumento da chegada de cruzeiros já fez desaparecer os golfinhos do Tejo, que chegavam até junto da Ponte 25 de Abril e eram um símbolo da cidade. Hoje os navios despejam milhares de turistas que ficam poucas horas, compram um íman, comem uma sandes trazida do navio, sujam e vão-se embora. Mesmo com o aumento da taxa turística, nada se resolve: é preciso limitar o trânsito de cruzeiros.
E os tuk-tuks? São hoje uma praga. Param em qualquer lado, muitas vezes conduzidos por rapazes que nunca ouviram falar do Marquês de Pombal ou do terramoto de 1755, mas que vendem aos turistas versões pós-modernas da História da cidade: D. José I transformado em “cavalo de Alfama”, Santo António cabeludo é Cristo-Rei, conventos inventados, bairros baralhados. Lisboa está a transformar-se numa anedota ambulante com rodas elétricas, e o problema não é quem conduz, mas a ausência total de regulação. Uma cidade que vive do turismo não pode dar-se ao luxo de se ridicularizar a si própria.
Liberdade de poluição

Depois, os outdoors. Verdadeiros mastodontes de poluição visual plantados nas praças mais emblemáticas. No Marquês de Pombal já foram retirados – não sem reclamações do PCP –, mas continuam na Alameda, em Entrecampos e na Avenida da República. Cartazes políticos em tamanho XXL que tapam a cidade e ofendem a inteligência dos cidadãos.
A Comissão Nacional de Eleições diz que é liberdade de expressão, diria antes liberdade de poluição. Pois eu digo que é preguiça legislativa e abuso descarado dos partidos.
O padrão é sempre o mesmo: medidas reativas, discursos bonitos, incapacidade de enfrentar lobbies turísticos e empresariais, falta de coragem para impor regras claras. Lisboa é governada como se fosse uma startup e casa de acolhimento apenas para nómadas digitais e investidores
Termina a campanha eleitoral e deviam ser eles próprios a retirar cartazes, bandeiras e penduricalhos. Liberdade não é impingir propaganda fora de tempo, muito menos num espaço urbano que devia ser respeitado como património. É aqui que até dou razão a Moedas: sim, os cartazes deviam sair, sobretudo fora de períodos eleitorais. O problema é que ele próprio se aproveitou do circuito exclusivo de mupis da CML para exibir obra feita em tempo de pré-campanha, o que não deixa de ser propaganda. Tira com uma mão, cola com a outra.
Cidade à deriva
E os TVDE? Vieram como promessa de modernidade, inovação e concorrência saudável, mas hoje são o retrato acabado daquilo que Portugal faz de melhor: improvisar e explorar mão de obra barata. Muitos motoristas são imigrantes bengalis, explorados por frotas que controlam dezenas de carros, sem direitos e tratados quase como descartáveis. As viaturas muitas vezes estão sujas, cheiram mal, os motoristas não conhecem a cidade, alguns não falam português nem inglês, guiam-se cegamente pelo GPS, travam de repente, largam passageiros onde calha. E no fim ainda têm o poder de avaliar o cliente.
O lisboeta paga, arrisca a vida no trânsito caótico e leva com três estrelinhas porque bateu a porta com força. Algumas das críticas que antes fazíamos aos taxistas parecem hoje quase injustas.
O que une todos estes exemplos é simples: uma cidade à deriva entre o laissez-faire e a cosmética política. Lisboa tornou-se laboratório do improviso: autarcas que decidem à pressa, com medidas que parecem remendos, sem visão de conjunto. Discute-se propaganda, mas não se resolve mobilidade. Brinca-se aos simulacros de sismo, mas não se reforçam infraestruturas. Tolera-se a selva dos tuk-tuks, dos TVDE e até dos cruzeiros porque dão emprego e geram impostos, mas fecha-se os olhos à desregulação, à insegurança e à exploração.
As barraquinhas de artesanato e souvenirs foleiros estão por todo o lado, assim como os carros e tendas de street food espalhados em qualquer praça. Em Belém, à segunda-feira, é uma lixeira de plásticos e lixo a voar para o rio. Adoro street food, e até podem ser divertidos do ponto de vista gastronómico, mas têm de estar em locais próprios, como as barraquinhas de Natal ou mercados sazonais. Não podem estar todo o ano a descaracterizar o Rossio ou a Praça da Figueira.
E é aqui que o problema ganha a sua verdadeira dimensão política. O padrão é sempre o mesmo: medidas reativas, discursos bonitos, incapacidade de enfrentar lobbies turísticos e empresariais, falta de coragem para impor regras claras. Lisboa é governada como se fosse uma startup e casa de acolhimento apenas para nómadas digitais e investidores: muitas ideias, pouca execução, ainda menos responsabilidade.
No meio disto tudo, quem sofre são os lisboetas ou, melhor, ex-lisboetas, empurrados para fora da cidade porque viver em Lisboa é hoje demasiado caro ou simplesmente inacessível, seja-se jovem ou idoso. Estamos a perder identidade, diferença e particularidade. Éramos uma capital europeia pequena, com tudo o que as grandes tinham, mas em ponto humano. Agora restam bairros descaracterizados, ruas congestionadas, monumentos tapados por outdoors, transportes e vias públicas mal tratadas ou com falta de manutenção. Basta olhar para o estado lastimável do piso da Rua Ferreira Borges, da Avenida Infante Santo ou a rua entre o Largo de São Roque e São Pedro de Alcântara (chama-se mesmo Rua de São Pedro de Alcântara) ao pé do fatídico Elevador da Glória.
Somos tratados como figurantes de um palco montado para turistas e investidores. Mas Lisboa não é apenas um destino, uma marca ou uma experiência. É uma cidade com História, memória e gente. E merece ser governada com mais do que cosmética. Precisa de planeamento, coragem e respeito. Caso contrário, continuaremos neste ciclo de improviso permanente, até ao próximo abalo – literal ou metafórico – que nos lembre, de novo, que não se constrói futuro em cima de areia.