Vivemos num país onde o líder de extrema-direita congratula os seus congéneres espanhóis em Madrid pela “caçada ao imigrante” em regiões como Múrcia, e exige a prisão do primeiro-ministro espanhol. Mas ainda existe quem julgue que a incorporação das políticas do Chega por cá é uma boa ideia. Coloquemos de lado as últimas sondagens que indicam a AD a perder terreno para esse partido exatamente por fazer isto e foquemo-nos no concreto aqui: o André Ventura naturalizado espanhol pediria hoje e amanhã ao povo português que colocasse o líder do Chega na prisão por causa do ladrão das malas, do pedófilo, do incendiário e de todos os outros da sua bancada com problemas na justiça. E ainda teria tempo para exultar a perseguição ao imigrante tuga em Espanha.
Estamos num país em que o Chega incorpora todos os temas fraturantes dessa agenda global, incluindo a violência e a intimidação, e aplica-os à sociedade portuguesa como se os vivêssemos de igual forma. Foi assim com o wokismo em que a agenda anti-woke claramente suplantou e suplanta, através de uma caça ao gambozino, a realidade. É ainda mais assim com o assassinato terrível, cobarde, que não deveria ter acontecido, do Charlie Kirk, mas que teve lugar num país profundamente doente como os EUA e que lida há décadas com um drama e um flagelo civilizacional maior: o facto de uma arma de fogo ser tão fácil de comprar como um pacote de pastilhas elásticas por cá.
Ou a imigração, que historicamente sempre foi vivida de forma muito mais pacífica em Portugal do que noutros países europeus, sem que a realidade de hoje e ontem deixasse de ir ao encontro disso, mas onde a extrema-direita nacional conseguiu exponenciar o racismo envergonhado que existia em muitos portugueses, fazendo a ligação mentirosa entre mais imigração e mais crime.
Hoje, a caça ao imigrante é uma realidade bem maior em Portugal do que em Espanha.
Encontramo-nos num país em que os mínimos conhecimentos sociológicos, políticos e históricos obrigam a saber que quanto mais cresce a extrema-direita – até chegar ao poder ou não –, pior ficaremos socialmente, economicamente e em todas as áreas de interesse para as pessoas, mas teimamos em olhar para a questão como se fôssemos uma ilha, enquanto a extrema-direita a globaliza e incorpora em cada país com narrativas marteladas e falsas.
As palavras que interessam através de discursos quando surgem e que tanto têm escasseado na União Europeia deixaram de ser para muitos por cá a primeira ação, ignorando-se que são a retórica física e digital que servem como combustível da extrema-direita e não a resolução dos “problemas das pessoas”. As redes sociais, onde as narrativas com influência política mais ecoam fatalmente na cabeça das pessoas, colocou essa arte política da resolução pragmática e essencial completamente de lado.
No entanto, da capitulação da direita dita moderada ou clássica à extrema-direita, por cá também se verifica quando ouvimos e lemos que um país à beira de uma guerra civil como os EUA – onde as pessoas já sentem medo em sair à rua na maioria das cidades, onde os pais têm medo e vivem na obsessão de conhecer o registo das centenas dos miúdos da escola dos seus filhos, não vá estar ali o futuro assassino estrambelhado do mundo artificial ou insano de um qualquer videojogo que mês sim, mês não, mata há décadas dezenas de ex-colegas, onde os imigrantes quando não são despejados do país como gado, passaram a ser tratados como animais da pior espécie e a democracia se encontra a ser desmantelada, instituição atrás de instituição – está a seguir o rumo normal e as coisas não estão assim tão más.
Já a esquerda moderada encontra-se num tal estado de paralisia que a palavra certa e contundente na União Europeia deixou mesmo de ser a primeira das ações para um candidato presidencial desse espaço. “Emoção, desejo e conhecimento”, como dizia Aristóteles, são o motor e eu reforço que o são mais do que nunca, mas parece que mais vale que até a última palavra aqui seja colocada de lado.
Essencialmente, quando se ignora que a União já não é uma bicicleta ou tão pragmática como gostaríamos, porque a força dos que no seio dela querem caminhar para o abismo do totalitarismo, do putinismo e do trumpismo, é tão acentuada e tão ou mais forte do que a dos que querem o contrário. Só quem percebe alguma coisa da complexidade dos tempos é que estará preparado para determinados combates que exigem coragem. Exigem-no porque ou se é verdadeiramente apreciado e odiado de igual forma, ou não se existe. É o que é e o contexto assim dita.
De pouco serve culpar supostas oligarquias, elites de partidos ou o que seja de meramente parecido por entenderem exatamente isto.
O problema está mesmo em quem julga que os que capitularam ou paralisaram com a ameaça social e do poder político completo da extrema-direita são um mal menor para esses combates.
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