Quando os sonhos acabam, termina a vontade de viver.
Sonhar, em sentido simbólico, é não estar cá, estando. É poder dormir, acordado. É estar na Lua, apesar de os pés se colarem ao chão (ainda). É gostar de ver mais além daquilo que nos é dado pela rotina aborrecida de muitos dias, demasiado iguais, planos de afetos, vestidos em tons pardos ou de cinza. Sonhar é falar sem voz, dando-lhe uma força perdida que assim escorre em palavras que (já) não nos surgem conforme desejamos, presas que ficam à gramática que as definha e as faz cumprir em… matemática. Que poética, que nada. Agora há papéis, carimbos faltam sempre e, melhor, sobram teclados e ecrãs, que nos encobrem enquanto pessoas, e mesmo escondidos, insistimos (espero que não) em formalidades absurdas, cumprimos papéis para alcançarmos um estatuto.
Sonhar é também poder juntar, misturar, abolir, transgredir livremente sobre e por diversos temas, desde os mais honestos até chegarmos àqueles que parecem bizarros e que não revelamos nunca. Sonhar ajuda-nos a pular a cerca, a desejar abrir portas e janelas e a questionar, em curiosidade própria: O que há para além daquele muro? O que desconheço eu, tanto, de mim e dos outros, que me faz pensar que nada resta por descobrir?
Sonhar revela e, por isso mesmo, inquieta (-nos): sem escolha ou filtro, conhecemos melhor locais onde moram os nossos desejos, o que é feito do que gostaríamos que fôssemos em vez do que somos. Passem então a pergunta: Quem é a pessoa que eu sou?
Sonhar é infinito e desconhecido como o universo vastíssimo. Ora apaixonante ora intimidante. O escuro traz-nos o sono e, com ele, o sonho diariamente revisitado por todos, mesmo por aqueles que dizem que não, não sonham ou, se o fazem, já não se lembram também. De facto, podemos mesmo perguntar: Para que sonhamos? Porque queremos evocar pessoas, memórias, criar acontecimentos diferentes daqueles que a realidade já nos oferece?
Seria melhor apagar a luz, ser grato, dizer repetidamente obrigado? Render-nos de maneira passiva ao que já temos? Chega. Há casos piores. Dantes, era bom, o mundo era seguro; agora, o futuro é só incerteza. Deixa-te de coisas e põe os pés na terra. Olhar para a frente é mau, mas pior é fazê-lo para cima: desilude. Então, evita. Conforma-te. Tranquiliza-te, não cries ansiedade em ti, não te deprimas. Ambas são manias que custam dinheiro, taras da era moderna.
Seria mesmo melhor assim? Talvez. Bem fica quem se adapta e cede e quem, todas as noites, se deita, sob anestesia e paz, mesmo que podre. Qual é mesmo o remédio que ainda falta tomar? On, off. De manhã, estimulantes; à noite, calmantes. On, off. Talvez. Mas não eu, nem se calhar outros. Tantos? Serão muitos?
Quando Ian Curtis, o jovem vocalista da minha banda de adolescente, Joy Division, se matou em maio de 1980, pareceu-me que o fim era já ali. Daquela música, do grupo; dos sonhos melancólicos que, por isso mesmo, traziam esperança e beleza. Enganei-me e foi boa a lição. Ainda no final desse mesmo ano, os restantes três (e agora mais uma) quiseram prosseguir, abraçando um novo projeto: os New Order, dos quais muitas músicas povoaram os meus sonhos de miúdo e me ensinaram que, afinal, podemos (devemos) prosseguir. A faixa que abria o primeiro álbum tinha por título “Dreams never end”.
Os meus também ainda não terminaram. Por isso, despeço-me, hoje, da VISÃO, 18 crónicas mensais depois de ter iniciado esta colaboração “pro bono”. Tenho sonhos e um deles, por agora, era poder continuar a escrever sobre o que gosto e como me sinto, de forma digna, reconhecido pelo que faço profissionalmente em áreas que vão para lá daquelas em que diariamente me visto de médico psiquiatra de crianças e adolescentes, a quem, já agora, sempre agradeço o facto de não me impedirem de continuar a sonhar. Como eles, se calhar, sinto-me numa imensa minoria.
Obrigado, VISÃO. Lugar agora, nesta coluna, aos sonhos de outros.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Um país de bondade e de bruma
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.