Talvez o outono seja a estação do ano em que olhamos à nossa volta com uma certa melancolia. Fecha-se o verão, o tempo da praia e das férias grandes para milhares de crianças e adolescentes. Regressa o ritmo das aulas, os dias encurtam, o verde envolvente toma, a pouco e pouco, outras tonalidades; recordo, como muitos, o prazer redescoberto de usar a primeira camisola e o seu contacto com a pele. É um momento de reencontro com o corpo e o pensamento em novo ritmo, mais íntimo, outra forma de calma e paz de que cada vez mais todos necessitamos.
O outono diz-nos sobre o modo como subitamente nos temos afastado de um contacto mais regular e cuidado com a Natureza de que, afinal, todos fazemos parte. De verdade, tal como não há propriamente corpo e mente como entidades separadas, também nós somos seres em constante interação com tudo o que nos rodeia e que, visivelmente, acabamos por ignorar ou maltratar até ao ponto em que agora muitos recordam o risco de se atingir um ponto sem retorno para o próprio planeta Terra.
Em Canção de Uma Sombra, o tão esquecido poeta Teixeira de Pascoaes escreve: “Sem esta terra funda e fundo rio/ Que ergue as asas e sobe em claro voo;/ Sem estes ermos montes e arvoredos/– Eu não era o que sou.” Cem anos depois, todos nos afastamos mais da experiência da terra, da contemplação dos rios ou dos arvoredos de que, afinal, a nossa própria vida depende.
Os dados dos últimos censos mostram que, só nos últimos dez anos, a população residente em Portugal continuou o seu intenso fluxo migratório para o Litoral, abandonando mais e mais o Interior da “terra”, onde perduram raízes, origens e o tempo, tal como o modo de vida que é sempre outro. Fugimos para onde a luz não para, o movimento se mantém intenso, lá nas grandes cidades ou nos doentios subúrbios, onde o esforço, físico e psíquico, necessário para se simplesmente “ser” se transforma num signo diário de tensão e, por consequência, de exaustão. Por isso mesmo, alguns autores de diversas áreas lembram o conceito de “pais cansados”: aqueles que tudo fazem por si e pelos filhos, prisioneiros de um modelo de vida em que o tempo nunca chega, a solicitação não termina, a pausa e o descanso saudáveis se tornaram momentos de rara e dolorosa exceção.
“Eu não era o que sou”, recorda-nos Pascoaes. E para muitos jovens de hoje, há uma pergunta essencial que se tornou evidente, embora os invada de forma não consciente: “E eu, quem sou? Ou, o que fui? E quem quero vir a ser?”. Cuidado, vivemos em sociedades bastante despidas de interioridade (tanto geográfica como psíquica), em que construir e partilhar um verdadeiro e sólido “Eu interior” surge como tarefa mais complexa, e isto quando parece sempre valer mais a simples vivência de superfície – aquela que, no oposto do poema de Pascoaes que ainda recorda “a noite misteriosa/ (…) olhos de sombras”, nos traz sempre o excesso de luz, “a vivência absoluta de positividade”, nas palavras do sociólogo Byung-Chul Han, que marcam ainda a “ausência de alteridade” (o positivo e o negativo, a luz e a sombra, o trabalho e o descanso) que nos obriga a parar, a desligar e a ouvir.
Parece que já não há terra, rios, outono. Escasseiam as casas, há prédios com apartamentos sobrepostos em altura, que definem as novas paisagens sem “montes ermos”. Morrem as linhas de horizonte que, em boa verdade, são também as do sonho e da fantasia. Os jardins são raros, esquecidos. E quem vive nestas novas colmeias (preocupa-nos a extinção das abelhas) continua a descrever-se como mais só.
Enfim, estar só, no meio de uma imensa multidão. Uma nova patologia psicossocial para a qual é preciso deixar entrar o outono e a suavidade com que ele nos lembra a maneira (re)olhar o mundo com uma certa esperança e encantamento, um pouco como aquilo que nos evocam as “Canções Sem Palavras”, a romântica obra para piano de Mendelssohn, toda ela sombra rasgando feixes de uma doce luz.
(Opinião publicada na VISÃO 1492 de 7 de outubro)
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