Uma das causas da crise da democracia é a falta de confiança nas instituições. A que se soma a perda crescente do sentido de comunidade entre a população, muito instigada pela apropriação dos mecanismos de decisão por parte de determinadas elites económicas, políticas e burocráticas, bem como pelo discurso divisor dos populistas, sempre interessados na destruição das estruturas democráticas e na sua substituição por formas autoritárias de poder.
Com o espírito comunitário enfraquecido e, com o que resta dele, a ser disputado e dividido por vários atores com propostas inconciliáveis, os atos eleitorais passaram a ser vistos, por grandes franjas da população, como irrelevantes ou apenas como forma de protesto. Servem, muitas vezes, só para “contar cabeças”, mas não têm subjacente, para a maioria das pessoas, a criação de uma solução estável e duradoura de governo, seja ele nacional ou local. E a participação nas eleições vai diminuindo e, na maior parte dos casos, esgota-se no momento em que o voto é depositado na urna, como se nada mais pudéssemos fazer a seguir – a não ser alistarmo-nos também na coluna dos descontentes…
Algo diferente acontece, no entanto, quando o sentimento de pertença a uma mesma comunidade se mantém elevado. Vimos isso em alguns locais nas últimas eleições legislativas e assistimos, agora, a algo semelhante nas eleições para a presidência do SL Benfica, como também já tinha acontecido nas do FC Porto: uma forte subida da participação eleitoral, proporcionando até imagens que há muito não se viam, como a de ter centenas de pessoas ordeiramente à chuva, numa longa fila para votar. E isso é algo que deve fazer-nos pensar.
Primeiro que tudo, não menosprezemos a importância de ver milhares de pessoas a participar, com empenho e determinação, numa eleição. Mais do que terem batido o recorde mundial de participação em eleições para um clube desportivo, o que os sócios do SL Benfica demonstraram foi, antes de tudo, o seu respeito por eleições democráticas e livres. E isso não é coisa pouca nos tempos que correm, em que crescem cada vez mais descaradamente os apelos de regresso ao passado – ao tempo em que não havia nem eleições nem liberdade. E quando alguém, que até ganhou fama a falar pelo clube, aproveita agora todos os momentos de exposição mediática a pedir “três Salazares”, convinha que os sócios do Benfica não tivessem memória curta: em 1942 bastou “um Salazar” para proibir o hino então oficial do clube, intitulado Avante, Avante P’lo Benfica. E, durante anos, as assembleias gerais do Benfica foram vigiadas de perto por agentes da PIDE, sempre em busca de subversivos. Nos mesmos anos em que o resultado de eleições toleradas em sindicatos ou em associações de estudantes era rapidamente virado do avesso, com a destituição e até a detenção dos eleitos, por serem considerados inimigos do regime.
Liberdade e eleições livres foram, a par do apelo para o fim da Guerra Colonial, as principais palavras de ordem gritadas a plenos pulmões nas ruas e praças portuguesas, nos dias seguintes ao 25 de Abril. Nesses tempos, esses slogans foram suficientes para unir um povo, criar um sentido de comunidade por uma causa comum.
Agora, a cada dia que passa, os algoritmos e os populistas esforçam-se permanentemente por nos retirar o que ainda pode restar dessa noção de comunidade, preocupados que estão apenas a arranjar argumentos para nos virar uns contra os outros, a inventar novos inimigos, a criar novos focos de controvérsia e polarização.
Ao menos, nas recentes eleições dos clubes desportivos, mesmo com muitas divisões e as mesmas tentativas de polarização, até com muito “jogo sujo” pelo meio, há uma comunidade que se preserva e que as eleições livres até ajudam a cimentar. Há respeito pelo resultado do voto e há, no fim, um mesmo propósito de procurar que o clube seja campeão – mesmo que os recetores dos votos não marquem golos.
Podemos argumentar que isso só acontece porque ali quem vota são os sócios, aqueles que pagam quota e vibram, quase sempre emocionalmente, pelo emblema que apoiam. A verdade é que, se pensarmos bem, também nós somos todos sócios do País – e pagantes, não com quotas, mas com impostos. Isso, só por si, deveria ser um impulso para fomentar os nossos laços de comunidade – construída, como acontece nas melhores equipas de futebol – com o acolhimento de todos, independentemente da sua cor, da sua etnia ou do seu credo. Se o fizermos, podemos ser todos campeões.