Uma das melhores histórias sobre paradoxos temporais foi escrita pelo mestre Ray Bradbury, o mesmo que, em Fahrenheit 451, nos mostrou um tenebroso mundo de pensamento único em que se queimavam livros. Em O Som do Trovão, um conto originalmente publicado na revista Collier’s em 1952, uma personagem pisa, sem querer, uma borboleta durante um safari no tempo, e esse pequeníssimo detalhe causa uma bola de neve de eventos, que culmina na chegada de um líder fascista ao poder. Quase uma década depois, o meteorologista Edward Lorenz cunhou a teoria do caos com aquilo a que chamou “efeito borboleta”, que assegura que variações muito pequenas e aparentemente insignificantes podem causar mudanças drásticas adiante.
Quando olho para os tempos políticos que vivemos em Portugal por estes dias, lembro-me deste efeito borboleta. Uma “viagem no tempo” para reverter a privatização da TAP causou uma sucessão frenética de efeitos, com uma pandemia e um processo de restruturação pelo meio, que passa pelo pagamento de uma indemnização a Alexandra Reis para a sua saída, a demissão de um ministro, de um secretário de Estado e da própria gestão da empresa, culminando com o fim da tolerância dos portugueses para com os erros, casos, casinhos e casões deste Governo e com uma comissão parlamentar de inquérito que expõe fragilidades na gestão da coisa pública e compromete irremediavelmente a imagem do executivo. Uma aceleração do tempo e do modo, que coloca o País numa radicalização e vertigem permanente, em direção ao que pode ser uma saída para o caos ou simplesmente o abismo de um caos ainda maior. Ao Presidente da República cabe tentar gerir esta desordem dos elementos, ora acelerando ora desacelerando os movimentos dos “corpos celestes” desta constelação política em balbúrdia.
Uma balbúrdia da qual as últimas sondagens dão nota clara: há uma queda substancial do PS nas intenções de voto face aos resultados das legislativas de 2022, com variações marginais de todos os outros partidos, exceto daquele que se alimenta precisamente do caos: o Chega. É verdade que as sondagens permitem legítimas dúvidas de interpretação, como a distribuição subjetiva de indecisos com critérios desconhecidos e potencialmente questionáveis e o facto de serem construídas num modelo de push marketing, ao conduzir os inquiridos num crescendo de perguntas, que começa nos problemas e nas polémicas e termina na questão da intenção de voto, estrutura que, tendo em conta o contexto, prejudica o partido no Governo. Mas uma coisa é inequívoca: o PS cai expressivamente dos mais de 41% da maioria absoluta para a casa dos 26% a 30%, enquanto o Chega dispara para os 13% a 14%, chegando mesmo, em Lisboa, a tocar nos 16%. Na sondagem da Aximage divulgada nesta segunda-feira, o PSD passa, pela primeira vez, à frente do PS por três décimas, mas a verdade é que não arranca nem se impõe como alternativa – algo bastante claro quando se comparam as respostas aos líderes, em que António Costa surge sempre, em todas elas, a larga distância de Luís Montenegro.
Há quem diga que as elevadas taxas de rejeição de André Ventura junto de uma fatia grande do eleitorado permitem concluir que a sua capacidade de crescimento é limitada. Talvez seja. A meio de processos eleitorais, as pessoas arriscam mais nas escolhas excêntricas de protesto, mas são mais cautelosas quando é “a valer”. Gostam de espreitar para dentro da taberna, mas não querem fazer lá um jantar de família. O líder do PSD finalmente percebeu isso e foi obrigado a traçar a linha vermelha com o Chega, mais cedo do que tinha desenhado no seu calendário, porque a indefinição estava a queimá-lo em lume cada vez menos brando.
No entanto, nada é garantido. Há muitas bolas no ar, e o desfecho depende muito de onde aterram e de que terreno se pisa. Basta ver o que se passa em França. Não estamos sozinhos no caos, bem entendido. Aí, o que sempre se pensou que era impossível, afinal, pode não o ser: com a implosão do Partido Socialista e da velha direita, o Rassemblement National de Marine Le Pen, aquela extrema-direita travestida de direita que se moderou, já pode ter condições para sair vitorioso, perante a desestruturação do centro-esquerda e da esquerda (vide entrevista a Gilles Lipovetsky publicada na VISÃO a 4 de abril).
A crise económica, a guerra e a síndrome da fadiga democrática marcam estes tempos. Os cidadãos estão ressentidos, insatisfeitos com a democracia, fartos dos políticos “do costume” e das respostas que estes lhes dão. A política, tal como a Natureza, tem horror ao vazio. Se os partidos moderados deixarem que este espaço de ressentimento fique em aberto, vêm garantidamente os populistas e os autoritários ocupá-lo. É preciso, sobretudo, oferecer soluções – atender aos problemas reais das pessoas comuns. António Costa percebeu os sinais e está a tentar travar o crescendo de rancor, comprando calços para a rampa deslizante com os apoios à inflação, o plano para a habitação e os aumentos para os pensionistas. Percorre uma finíssima linha mesmo para o maior dos otimistas, com alta pressão social e um Presidente a apertar o cerco – logo, não pode permitir a descoordenação política nem cometer mais erros básicos. Ao centro-direita, Luís Montenegro tem também de fazer o trabalho de casa e mostrar ideias e propostas, demarcar terreno e convencer o eleitorado de que é alternativa, além de se anunciar como tal. Com o abismo aqui tão perto, não dá para continuar a pisar borboletas.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR