Diz a tradição que, chegados ao fim do ano, fazemos balanços e reflexões. A tarefa está, por estes dias moldados pela Covid-19, amplamente facilitada. Poucos foram os períodos na História em que praticamente todos, à volta do globo, alinham numa anormal sintonia: este foi um ano de consensual desgraça. 2020, que preferíamos esquecer e riscar do calendário, foi em tudo o período mais memorável da História Contemporânea: o ano que nos matou, assustou, fechou em casa, acossou, empobreceu, desumanizou… o ano que o diabo amassou.
De um dia para o outro, 2020 trouxe doença, angústia e medo, pobreza e despedimentos, privação de contactos e afetos, falências económicas e civilizacionais. Desde que surgiram os primeiros casos identificados na província de Wuhan e rapidamente se espalharam pelo mundo, perdemos muito do que dávamos por adquirido, sem dar o devido valor: a liberdade, as fronteiras abertas, um mundo global à distância de um voo, a confortável sensação de segurança e previsibilidade. Até agora, os números oficiais dão conta de mais de 77 milhões de contaminados pelo novo coronavírus, e mais de 1,7 milhões de mortos. Mas, além de ceifar vidas, com a Covid-19 morreu também um modo despreocupado de ser e de viver: incorporámos novas e obsessivas rotinas de higiene e segurança, passámos a olhar os outros – e o futuro – com desconfiança.
Este foi também o ano em que os negacionismos e as teorias da conspiração ganharam uma força nunca vista. Quando a realidade é nova, complexa e difícil de apreender, avançam no terreno fértil as narrativas alternativas, fáceis e supostamente ocultas. É mais fácil acreditar em mentiras oferecidas nas redes sociais do que em realidades duras, intrincadas e inconvenientes, para as quais ainda não temos todas as respostas. Se no início da pandemia a ciência e os média mostraram bem o quão fundamentais são, com o passar dos meses e com a fadiga da pandemia, uma fatia crescente de gente desiludida, assustada e manipulada passou a preferir acreditar em histórias mirabolantes, em vez de naquilo que dizem os médicos, os cientistas e os jornalistas. Em 2020, para muitos a verdade perdeu valor, porque a verdade foi demasiado dolorosa.
Não deixa de ser espantoso que tudo isto tenha sido causado por uma partícula de exiguidade absurda, um ser submicroscópico de milésimo de milímetro que não chega sequer a ser um ser vivo – o SARS-CoV-2 é só uma película de proteína com um singelo material genético ou ácido nucleico lá dentro. Um vírus, inimigo número um da espécie humana logo a seguir a ela própria, que é uma espécie de morto-vivo, e fez de nós por estes dias vivos mas pouco. Apenas sobrevivos, à espera de melhores dias, para podermos voltar à normalidade que ansiamos, mas que dificilmente vamos recuperar. Mesmo com a vacina que começa agora a chegar, acredito que 2020 vai deixar cicatrizes, sociais e políticas, que não conseguimos ainda totalmente vislumbrar.
Camus, autor de A Peste, dizia que os flagelos surgem para desgraça e ensinamento dos homens. E que é nestes momentos que nos habituamos à verdade. Tenho para mim que uma das aprendizagens mais espantosas de 2020 foi recordarmo-nos da nossa fragilidade e da nossa pequenez existencial. Munidos da nossa tecnologia e da nossa ciência, achávamo-nos dominantes e indestrutíveis, com o mundo aos nossos pés. Percebemos, ou recordámos, que somos só mais uma espécie que partilha este planeta com bactérias e vírus. Nuns dias ganhamos nós, noutros ganham eles. Em 2020, perdemos nós. Este foi também o ano em que percebemos o que realmente nos faz falta e nos importa, o quão supérfluas são muitas das nossas necessidades, e também o cliché que tendemos a esquecer: como a felicidade pode estar realmente nas pequenas coisas. Passámos a incorporar a ideia de que, num ápice, tudo pode mudar. E por isso, talvez o melhor de tudo isto fique: dar mais valor ao hoje e ao agora. 2020 foi um desaire. Não ficámos nem vamos ficar todos bem, mas se estamos bem, é aproveitar enquanto é tempo.