Em dezembro de 2019, a Assembleia da República debatia-se de forma veemente quanto à frequência e facilidade com que os termos “vergonha” e “vergonhoso” eram usados na discussão política, ponderando-se se essa utilização se mantinha nos limites da liberdade de expressão ou se, pela sua banalização, constituíam ofensa ao próprio Parlamento, desprestigiando as instituições democráticas. Sem pretender reabrir esse debate, e convicto de que o mesmo se resolve mais numa base de bom senso e razoabilidade do que no âmbito de uma aprofundada discussão jurídica, não há como negar que há expressões que, ditas por quem tem responsabilidades públicas, ecoam muito para lá do instante em que são proferidas.
A palavra “vergonha”, quando arremessada a uma qualquer instituição pública, no decurso de uma intervenção por pessoa com especiais responsabilidades na engrenagem do Estado, nunca se esgota em si mesma. Ao invés, carrega um peso moral e carga acusatória que transforma aquilo que podia ser uma saudável crítica num verdadeiro julgamento público. Com efeito, no decurso desta semana, o senhor ministro Adjunto e da Reforma do Estado afirmou que a justiça administrativa e fiscal portuguesa é “uma vergonha nacional”. A frase correu o País, criou a natural polémica mas, sem fugir à questão de fundo, impele-nos a refletir até que ponto o discurso político deve recorrer a um discurso humilhante para nos dizer o que pretende mudar no País.
Um pouco mais de atenção àquilo que são os standards europeus de que a democracia e o Estado de Direito nos devem querer fazer aproximar bastaria para se compreender o que é ou não aceitável nesta matéria. As normas europeias são claras: “Embora seja admissível a crítica objetiva aos tribunais e às suas decisões, não é aceitável que outros poderes do Estado critiquem o poder judicial de forma a comprometer a sua independência, autoridade judicial ou a confiança pública na justiça” – recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa, CM/Rec (2010)12 sobre os juízes: independência, eficiência e responsabilidades, parágrafo 18.
É evidente que a justiça administrativa e fiscal tem problemas que são conhecidos e que redundam em importante morosidade que importa aplacar. Contudo, não é legítimo afirmar esta realidade sem que se coloque na mesma frase a mais que denunciada falta de meios humanos e técnicos, com a qual os juízes se têm debatido de forma constante ao longo dos últimos anos, sem que os seus esforços sejam reconhecidos ou as suas propostas de melhoria sejam minimamente atendidas.
Importa ter presente que o sentimento ou a perceção de ineficiência de qualquer instituição pública é apta a minar a confiança dos cidadãos. Porém, existe uma diferença — e ela é fundamental — entre identificar problemas e transformar uma jurisdição inteira num motivo de vergonha nacional. Quando um membro do Governo usa essa expressão, não está apenas a denunciar uma falha; está, consciente ou não, a colocar em causa a legitimidade de um dos pilares do Estado de Direito. E isto porque o termo “vergonha” tem uma força simbólica inegável. É mais do que um adjetivo — é uma sentença moral. E quando aplicado a um setor como a justiça, que se baseia na credibilidade e na imparcialidade, o impacto é inevitavelmente corrosivo. Dito por um cidadão comum, pode constituir um desabafo, mas dito por um governante, é deslegitimação.
Além disso, e apesar de tais declarações não serem provenientes do ministro que efetivamente tem a tutela da Justiça, deveria ser do conhecimento de quem tem responsabilidades governativas todo o esforço que os juízes da jurisdição administrativa e fiscal fazem no seu dia-a-dia no sentido de alcançarem as melhores taxas de resolução, mesmo tendo em conta os meios absolutamente desajustados e insuficientes que têm ao seu dispor. Por outro lado, muitas das propostas de resolução de problemas na jurisdição administrativa e fiscal têm provindo precisamente dos juízes, designadamente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses e do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo que o que na verdade surpreende é a sucessiva falta de resposta política que lhes é dada, não podendo concluir-se de outra forma senão no sentido de que o alvo deste discurso foi mal escolhido.
Os exemplos internacionais deviam servir de alerta. Na Polónia, a deslegitimação do poder judicial começou precisamente com este tipo de linguagem. Primeiro vieram as críticas inflamadas, depois os cartazes nas ruas e por fim as reformas que limitaram a independência dos juízes. Na Hungria, Viktor Orbán foi ainda mais longe: chamou “vermes” aos magistrados, criando-lhe um clima público de hostilidade. E se esses países vivem e viveram crises institucionais profundas, a verdade é que nenhuma delas se iniciou com leis autoritárias, mas antes com discursos e com palavras corrosivas da confiança coletiva.
Estamos certos que Portugal não pretenderá fazer esse caminho, todavia é nas pequenas erosões discursivas que os sistemas democráticos começam a perder consistência. A confiança pública é uma construção frágil e as palavras de quem governa têm um poder simbólico enorme. É por isso que a liberdade de expressão — valor absoluto em democracia — deve andar sempre de mãos dadas com a prudência e o equilíbrio, sobretudo quando exercida por titulares de cargos públicos.
Mais do que dedos em riste, o País precisa de diagnósticos sérios e de diálogo. Precisa de compromisso, investimento e cooperação entre poderes. A justiça tem problemas estruturais, sim, mas também tem profissionais que continuam a trabalhar com dignidade, zelo e competência, mesmo em condições adversas e em número muito inferior aos que seriam necessários. O discurso da vergonha não resolve nada — apenas alimenta a ideia de que o Estado está irremediavelmente falido. As democracias não se degradam apenas por falta de leis ou de recursos; degradam-se também pela forma como falam de si próprias.
Num tempo em que a política parece viver da indignação instantânea, talvez a verdadeira coragem esteja antes em construir e em falar com equilíbrio.
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