Durante esta semana, teve início do julgamento do processo que ficou conhecido como “Operação Lex”. Não há como negar a importância de que este processo se reveste no panorama jurídico português, constituindo também um relevante teste à robustez do nosso Estado de Direito. Com efeito, e tal como sucede com todos os processos em que estejam em causa titulares ou ex-titulares de órgãos de soberania, servidores do Estado ou responsáveis por instituições relevantes para o seu funcionamento, sempre que um tribunal é chamado a apurar eventuais responsabilidades criminais por factos cometidos no exercício de funções, há sempre um natural sobressalto na perceção pública a que se impõe dar resposta com clareza e transparência, tal como exigido numa sociedade moderna e verdadeiramente democrática.
Contudo, sem prejuízo de algumas perigosas generalizações e do normal interesse mediático que envolve este processo, tal como vai sucedendo com outros chamados “megaprocessos”, a verdade é que o mesmo se apresenta como absolutamente inédito e excecional na história judicial portuguesa. Essa excecionalidade decorre, desde logo, da qualidade dos envolvidos que, em parte, serviam à data dos factos como juízes desembargadores, sendo que este processo, sem deixar de causar forte apreensão, beliscando a confiança pública na justiça, não deixa, em contraponto, de se afirmar como um exemplo de que a mesma, dentro de todas as suas contingências e dificuldades, não deixa de funcionar.
Com efeito, apesar de chegarmos a julgamento volvidos quase oitos anos, o que, manifestamente, se afigura um prazo longo motivado pela complexidade da investigação e pela intermediação de uma fase de instrução, a verdade é que a inquietude que o mesmo suscita, desde logo por existirem acusados que exerceram funções judiciais, não pode deixar de legitimar o contraponto de tranquilidade que representa a sensação de que o sistema de justiça foi efetivamente capaz de detetar, investigar e agir.
Dito isto, e porque por vezes se verifica alguma estranheza pelo facto do julgamento decorrer no Supremo Tribunal de Justiça – em regra um tribunal de recurso –, cumpre explicar que tal circunstância decorre diretamente da lei. De facto, prevê o Estatuto dos Magistrados Judiciais, em norma que visa o estabelecimento de maiores garantias de imparcialidade e distanciamento, que o foro competente para o inquérito, a instrução e o julgamento dos magistrados judiciais por infração penal, bem como para os recursos em matéria contraordenacional, é o tribunal de categoria imediatamente superior àquela em que se encontra colocado o magistrado, sendo para os juízes do Supremo Tribunal de Justiça este último tribunal. Assim, pese embora os antigos juízes envolvidos no processo já não exerçam funções à data de hoje, seja por jubilação, seja por força de decisões proferidas pelo Conselho Superior da Magistratura em processo disciplinar, a verdade é que o Supremo Tribunal de Justiça deve julgar os factos como se de um tribunal de primeira instância se tratasse.
Este caráter singular confere à “Operação Lex” uma dimensão especial em que um coletivo de Conselheiros terá a seu cargo a condução dos trabalhos de julgamento, ouvindo as testemunhas, analisando documentos e demais provas para, no final, tomar uma decisão fundamentada de absolvição ou condenação. Trata-se, inegavelmente, de um momento em que o próprio sistema judicial se vê colocado sob escrutínio público e em que a justiça é chamada a julgar factos que, em parte, se relacionam consigo mesma.
Esta raridade, porém, não deve ser vista como sinal de fragilidade, mas antes como demonstração de maturidade institucional. O simples facto termos chegado à fase de julgamento é um sinal de que existem mecanismos internos de controlo e de que ninguém, independentemente da sua função ou estatuto, está acima da lei. É um sinal de que também os juízes podem ser objeto de escrutínio em processos de natureza penal, aí podendo exercer, como todos os cidadãos, os seus direitos e beneficiando das mesmas garantias legais e constitucionais.
Afigura-se importante que o acompanhamento deste processo se faça de forma exemplar e sem mácula, pois que a sua transparência e a sua compreensão serão sempre as melhores garantias para salvaguarda da confiança pública nas instituições e na justiça em particular, assim se demonstrando que esta não se fecha sobre si própria, mas antes se dispõe a ser escrutinada e ao dever de fundamentar e esclarecer.
Num momento em que, um pouco por todo o mundo, crescem fenómenos que fomentam e se alimentam da perceção de descrédito público das instituições, afigura-se particularmente importante que este julgamento decorra com o máximo de rigor, mas também de serenidade e de clareza. A justiça não se mede apenas pelas decisões que profere, mas pela forma como os processos decorrem e pelo modo como são compreendidos pela sociedade. Este, como todos os julgamentos, não pode prescindir do absoluto respeito pelos direitos dos arguidos, pelo princípio do contraditório e pela presunção de inocência, sem cedência a pressões mediáticas ou externas de qualquer tipo.
Ao mesmo tempo, é fundamental que se evite a lentidão processual que tantas vezes mina a credibilidade dos tribunais. O equilíbrio entre o rigor jurídico e a celeridade processual é aqui decisivo: cada decisão deve ser tomada com base em provas sólidas e devidamente fundamentadas, para que o resultado — seja condenatório ou absolutório — seja percebido pela sociedade como justo e verdadeiramente imparcial.
A Justiça é um pilar essencial de qualquer democracia e deve responder com prontidão e capacidade de comunicação em todas as circunstâncias. Muito mais do que o resultado da decisão final, o modo como este processo vai decorrer servirá, inegavelmente, como um barómetro para aferir da credibilidade do sistema e da forma como a justiça é capaz de alcançar resultados que sejam compreensíveis para o cidadão comum. Se o julgamento for exemplar, transparente e justo, tal será um sinal de vitalidade institucional e de confiança renovada. Se, pelo contrário, fosse conduzido de forma obscura ou complacente, o dano à imagem da justiça seria incalculável.
Por tudo isto, o início do julgamento da “Operação Lex” não é apenas um episódio mediático, mas um marco no percurso da democracia portuguesa e de afirmação do princípio da igualdade perante a lei enquanto pedra de toque do Estado de Direito. De igual modo, é um marco na afirmação inequívoca do princípio da independência judicial no ato de julgar, independentemente da qualidade dos intervenientes e do sentido para onde a decisão deverá pender após análise imparcial das provas.
No final, mais importante ainda do que o desfecho concreto do caso será o exemplo que o processo deixará. Se aos olhos da comunidade estivermos perante um caso rigor, serenidade, celeridade, transparência e justiça, então todos assistiremos a uma vitória da confiança nas instituições e na própria democracia como valor maior numa sociedade moderna.
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