As imagens das filas de gente faminta à porta da mesquita de Lisboa em busca dos apoios mais básicos mostraram às classes mais favorecidas um cenário que as novas gerações de Portugal desconhecem, ou que apenas viram em documentários sobre que país era este antes do 25 de Abril. Voltou a haver fome em Portugal. Fome é literalmente não ter o que comer. Fome é ter um trabalho independente que foi interrompido e não ter familiares nem amigos a quem se possa recorrer. Fome é ter 80 cêntimos no banco e ligar a uma pessoa que sabemos que nos pode valer e pedir ajuda, porque como dizia hoje uma amiga minha numa mensagem de desabafo no WhatsApp, “vergonha não é pedir ajuda, vergonha é roubar”.
As pessoas têm fome e têm medo. Medo do presente o do futuro. Medo que o seu pequeno negócio não sobreviva, que o seu restaurante de bairro que já tem poucas mesas, com menos mesas ainda, não consiga alcançar uma margem que dê lucro, porque as despesas fixas estão lá e não baixam, enquanto as receitas só vão subir quando a pandemia acabar, mas para tal, é necessário que haja consumo. Não é preciso ser economista para entender o óbvio. Não nos podemos iludir: estamos perante uma guerra biológica que ninguém sabe quando vai acabar nem que marcas deixará no mundo. O vírus da China é agora um vírus económico, e ainda a procissão vai no adro. E onde fica o amor no meio de tudo isto?
O amor fica nos amigos que não deixam cair os mais aflitos, nas famílias que funcionam como redes de apoio, nos patrões que conseguem salvar as empresas. O amor fica nos gestos mais básicos e simples, sem margem para momentos lúdicos nos intervalos da vida, porque agora não existe margem para desbaratar nada, nem afetos, nem dinheiro. Repito: não nos podemos iludir, estamos em guerra, pela primeira vez a guerra é global, o inimigo não tem raça nem cor e não conhece fronteiras. O inimigo está em toda a parte mas ninguém consegue vê-lo, voa como um diabo pelo ar, cola-se às superficies, sofre mutações constantes, e o preço para o debelar custa milhares de vidas, porque criar imunidade de grupo é como lançar milhares de soldados para a frente de batalha, sabendo que vão sucumbir. Mas é também nestes momentos, tão difíceis quanto extraordinários, que o amor faz mais falta.
Ando há mais de trinta anos a escrever sobre amor e há vinte a publicar romances de amor, e acho que nunca soube tão pouco sobre o tema. Além de muitos tipos de amor que qualquer ser humano identifica e distingue – o maternal, o fraterno, o casto, o carnal, o passional, o platónico, o religioso, o libidinoso, o altruísta, o egoísta, o efémero ou o eterno – , o amor em si mesmo permanece um imenso mistério. No entanto, existe uma chave para o desvendar, que são os atos de amor. O amor em si talvez nem exista, o que que existem são provas de amor. E nunca, como agora, foi tão importante dar essas provas ao próximo.
A pandemia levou muita coisa: sonho, prosperidade, otimismo, planos para o futuro. E trouxe insegurança, medo, um nevoeiro espesso de incerteza que irá pairar como uma sombra, apenas esquecida nos dias de sol, ou mesmo nem durante esses dias. Mas uma coisa é certa: a pandemia não nos deixa margem para o erro, a distração, a aventura, a transgressão. Não temos cabeça nem energia. E não temos coragem, porque não temos margem.
A pandemia roubou margem aos intervalos da vida, aqueles durante os quais nos dávamos ao luxo de desligar de tudo para ir ao cinema ou namorar às escondidas. Agora somos todos soldados de um exército que se vai armando o melhor que sabe, uns mais conscientes do que outros, ou apenas mais hábeis no processo de adaptação forçada, inevitável e horrível. Poucas vezes escrevi esta palavra, porque a palavra horrível é já de si muito horrível, mas hoje, sob o céu cinzento dentro e fora do meu coração, o que considero importante escrever é isto mesmo: não podemos baixar os braços nem podemos iludir-nos. Podemos, em vez disso, pensar, a cada dia que passa, o que está ao nosso alcance para fazer o melhor possível por nós e por aqueles que amamos ou que precisam ou dependem de nós. Podemos ser proativos e sensatos. Podemos ser generosos e cordatos. Não podemos dar abraços, mas podemos dar coragem e força. Podemos ajudar sempre, de uma forma qualquer, com afeto, com carinho, com amor. Seja lá que tipo de amor for, porque a pandemia não pode chegar ao coração. Não vai ficar tudo bem, vai ficar como tiver de ficar. E cada gesto conta.
Cada gesto pode ajudar, até que o alento volte devagar, como um convalescente que pousa os pés no chão à procura de equilíbrio, depois de semanas acamado. Não podemos deixar que a pandemia nos desumanize, o caráter está no coração.