É de duas solidões escolhidas que nasce a melhor das companhias. A frase não é minha, é do último parágrafo de uma maravilhosa crónica – e não são todas? – da mítica série A Causa das Coisas publicada nos anos 80 no Expresso, pela pena lúcida e iluminada de Miguel Esteves Cardoso. Eu ia dentro do avião, quase a aterrar em Londres que visitava pela primeira vez e o meu sonho de ser cronista estava a um ano de se concretizar. Trinta anos depois, o MEC continua a escrever crónicas e eu também, e continuo a concordar com ele em quase tudo.
É de duas solidões escolhidas que nasce a melhor das companhias, mas não é para quem quer, é para quem pode. Saber estar só não é para os corações mais carentes, os espíritos mais inseguros ou para as mentes mais medrosas. Cozinhar o jantar e pôr a mesa apenas com um lugar, enfrentar o desafio dos fins-de-semana e das férias sem um par, tomar decisões que envolvem pedidos de empréstimo ao banco ou mudança de emprego, mudar um pneu ou ir fazer um TAC sozinho, não é para qualquer um. O mundo não está organizado para a singularidade, embora as pessoas estejam cada vez mais sozinhas, consequência deste maldito progresso tecnológico que nos isola do mundo, enquanto nos engana com a ilusão de estarmos ligados. É claro que estamos ligados, mas não é uns aos outros, é uma nuvem virtual universal que contém as mais variadas aplicações lúdicas ou úteis que nos permitem encontrar uma companhia fugaz para um par de horas e mandar vir o nosso sushi preferido num motoboy que serpenteia a cidade para atender aos pedidos da aplicação sem sairmos da toca. Andamos todos tão aplicados e absorvidos com as maravilhas da tecnologia que nos esquecemos do tempo que passamos sozinhos é o mesmo que podíamos passar com alguém que amamos. E, ironia das ironias, sentimo-nos cada vez mais sós.
A solidão não é país fácil, nem de visitar, nem de viver. É silencioso como uma mordaça e árido como o Atlas, embora com belos oásis e bastantes miragens, como é próprio ao deserto. Mas às vezes não existe outro caminho senão o de uma travessia, mesmo sem sabermos onde tal caminho nos leva. É preciso subir a montanha para ver o mundo sob outra perspetiva, portanto a ideia é não ter de levar uma pedra às costas, qual Sísifo, que deve ter sofrido de lombalgia crónica, além das maleitas de alma que se chamam desânimo e desespero. Subir a montanha, atravessar o deserto, fazer o caminho das pedras, chamem-lhe o que quiserem, é sempre duro, difícil e arriscado. Contudo, acredito, tal como há 30 anos, que é menos arriscado do que ficar com alguém que não amamos, ou que não admiramos, ou que nos faz sentir culpados, apenas pelo medo de encarar a solidão.
Mais vale só do que mal-acompanhado, ou desacompanhado, ou refém de uma relação que já morreu e que o medo da solidão embalsamou, com olhos de vidro e o interior empalhado. Mais vale estar só do que suportar a presença de alguém que se tornou indiferente, e por isso mesmo, insuportável. O peço que se paga por estar preso a alguém de quem já não se gosta, esse sim é terrível.
As pessoas que têm medo de ficar sozinhas, fazem as opções erradas em relação às pessoas com quem ficam, porque na verdade essas pessoas nem sequer são escolhas, são fardos. As únicas pessoas que conseguem encontrar alguém que corresponde ao que mais desejam e ambicionam são as que são capazes de encarar a ideia de que para isso é necessário passar por alguns meses ou anos de solidão, até encontrar a tal pessoa, ou não.
Estar com a pessoa que com quem não é bem aquilo que queremos, parece tolerável, mas com o tempo torna-se um sacrifício. É como ter uma pedra no sapato, quando começamos a andar, quase nem se sente, mas depois torna-se num incómodo cada vez maior. Na companhia errada, o destino mais idílico torna-se sensaborão, a comida mais saborosa parece insonsa, o sexo é uma chatice, não raro um ato penoso e desagradável, as conversas não fluem e as noites transformam-se numa viagem ao centro da terra só de ouvir o outro respirar, ou resfolegar, ou ressonar. E mesmo que não ressone, nós achamos que sim, e mesmo que durma como um anjo, ao menor movimento, sentimos que não vamos aguentar, porque tudo nos sabe a pouco ou a azedo, deixando o dia-a-dia com um amargo de boca e a visão do futuro como um nevoeiro espesso ou um campo minados de trolls, dragões um exército terrífico de mortos-vivos que são afinal, nada mais do que as nossas frustrações, os nossos traumas e as nossas inseguranças.
As pessoas que temem a solidão, não têm tempo nem oportunidade para se conhecer a si próprias. Jamais enfrentarão o prazer de subir Machu Picchu sozinhas, ou, para quem não é mais citadino, assistir a um bom filme numa sala de cinema que parece feita à nossa medida. Quem não sabe estar só, acomoda-se a uma mediocridade confortável, na qual a curiosidade agoniza, anestesiada, fazendo com que uma pessoa ligue o piloto automático e sinta que afinal não está assim tão mal. As pessoas tornam-se reféns daquilo que acreditam ser as suas necessidades, quando, em bom rigor, dariam tudo para ter outra vida. É apenas normal que, quem viva preso a uma segunda escolha, não consiga evitar olhar para fora da gaiola autoimposta onde se passeia a pessoa que de facto deseja. Se é para isso que estamos com alguém, então mais vale ter a coragem de atirar a toalha para o chão e enfrentar a solidão, que neste caso rima com resiliência, com verdade e com liberdade.
Estar só não deve ser visto nem sentido como um castigo. Estar só pode ser uma escolha consciente e corajosa, até aparecer alguém com quem tudo vale a pena. A tal melhor companhia que nos enche os dias e as medidas. É uma questão de tempo, de bom-senso e de sorte.