O Acórdão do Tribunal Constitucional 268/2022 veio declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas que previam a obrigação de conservação de metadados para efeito de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes.
Em outubro a Assembleia da República aprovou alterações às referidas normas (Decreto n.º 91/XV da Assembleia da República, publicado no Diário da Assembleia da República n.º 26, II Série A, de 26 de outubro de 2023) com o intuito de conformar tais normas com a Lei Fundamental.
Entre as alterações propostas e com aquela finalidade, restringiu-se a conservação dos dados por parte dos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações ao território de Portugal ou de outro Estado-Membro da União Europeia e, portanto, em cujas jurisdições são assegurados níveis de proteção dos dados materialmente equivalentes àqueles que decorrem da Constituição e procedeu a uma densificação do período de conservação dos dados previsto no artigo 6.º, com o estabelecimento de regras diferenciadas em relação às diferentes categorias de dados em causa.
Assim, para os dados de base prevê-se a conservação de um ano e para os dados de tráfego e de localização o período de três meses a contar da data da conclusão da comunicação, considerando-se esse período prorrogado até seis meses, salvo se o seu titular se tiver oposto perante as referidas entidades à prorrogação dessa conservação.
Os prazos de conservação podem ser prorrogados por períodos de três meses até ao limite máximo de um ano, mediante autorização judicial fundada na sua necessidade para as finalidades referidas, requerida pelo Procurador-Geral da República.
Não obstante as alterações introduzidas pelo legislador, o Tribunal Constitucional através de novo Acórdão (800/2023) veio novamente chumbar as alterações propostas no que tange aos dados de tráfego e de localização, considerando, na sua essência, que não obstante a redução do prazo de conservação, se mantinham ultrapassados os limites da proporcionalidade no que respeita ao respetivo âmbito subjetivo (ou seja, continua a ser geral e indiferenciada, e não seletiva, por não se dirigir, de forma direta, objetiva e não discriminatória, a pessoas que tenham uma relação com os objetivos da ação penal, antes continuando a atingir sujeitos relativamente aos quais não há qualquer suspeita de atividade criminosa), restringindo-se os direitos fundamentais à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa.
Para a maioria dos Juízes do Tribunal Constitucional a manutenção de uma base dedos de localização e de tráfego de todos os assinantes, abrangendo as comunicações eletrónicas da quase totalidade da população, sem qualquer diferenciação, exceção ou ponderação face ao objetivo perseguido, constitui uma solução legislativa desequilibrada, por atingir sujeitos relativamente aos quais não há qualquer suspeita de atividade criminosa.
Não obstante o respeito devido pela decisão do TC, salientamos aqui que essa opinião não é unânime entre os juízes do Palácio Ratton.
De destacar os votos de vencido de três dos juízes, expressos no Acórdão, e de que aqui deixamos alguns dos argumentos que contrariam a declaração de inconstitucionalidade.
No primeiro voto de vencido as críticas ao TJUE que elevou a tutela dos direitos ao respeito pela reserva da vida privada, à proteção dos dados pessoais e à liberdade de expressão a um ponto que, não leva em suficiente conta a solidariedade devida entre membros da mesma comunidade, como fez retroceder a real capacidade de proteção dos outros direitos fundamentais das pessoas afetadas por práticas criminosas especialmente graves para níveis incompatíveis com a proibição da proteção deficitária, pondo dessa forma em causa o princípio do respeito, garantia e efetivação dos direitos e liberdades fundamentais na ordem jurídica interna em termos de que não se pode alhear o Tribunal Constitucional, enquanto guardião de toda a Constituição.
No segundo voto de vencido ao considerar que, em geral, a conservação de dados, tal como está prevista no diploma, é uma forma proporcional de realização dos deveres de proteção de bens fundamentais, nomeadamente da própria autodeterminação informacional ou informativa, tendo já sido questionado se, na sua ausência, não há mesmo uma violação do princípio da proibição do défice de proteção. Na verdade, a liberdade em segurança é um aspeto fundamental do Estado Constitucional.
No terceiro voto de vencido a observação de que a alegação de que a conservação indiscriminada de dados de tráfego (e de localização) faz de todos nós suspeitos do cometimento de crimes, ela vale o que vale. Somos tão suspeitos de ser criminosos em virtude da possibilidade de conservação generalizada e indiferenciada dos dados em questão, como somos suspeitos de cometer infrações fiscais em virtude da existência de uma base de dados bastante circunstanciada da Autoridade Tributária, como seremos suspeitos de terrorismo em virtude da existência de uma base de dados dos serviços de inteligência do Estado.
Perante a nova decisão do Tribunal Constitucional vemos com algumas reservas que o parlamento consiga encontrar uma solução legislativa capaz de superar o juízo de inconstitucionalidade.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ O grande erro do Ministério Público
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.