“A música é o que nos salva”, escreveu Pedro Abrunhosa num lindo post de agradecimento a Carolina Deslandes. Fiquei a pensar nisto enquanto ouvia música, a pensar no que nos salva, no que nos nutre nestes tempos estranhos. Salva-nos a música, salva-nos a arte nas suas diversas formas e salva-nos o desejo, que nos orienta os caminhos. Mas vivemos tempos de medo, e o medo mata o desejo.
O desejo é mobilizado pelo erotismo, esse combustível infalível que acorda o corpo e o prepara para a experiência sexual. Mas este campo também não está favorecido. O erotismo anda pelas ruas da amargura. Vivemos tempos confusos. A pandemia atirou-nos para longe uns dos outros ou para demasiado perto. No caso dos casais em coabitação, foi perto demais porque a excessiva proximidade abafa a experiência erótica e por isso, apaga o desejo. O erotismo precisa de espaço, movimento e ar, como um fogo para se manter aceso.
Como resgatar o erotismo neste tempo acelerado, em que quase tudo é planeado e controlado? O imediatismo, a rapidez, a capacidade de ser multitasking, e o control, são valores da modernidade – que ajudam imenso à produtividade! – mas, atrapalham muito a vivência amorosa e sexual (que não têm que ir juntas).
A vida decorre a um ritmo acelerado, ditado por uma agenda carregada que tantas vezes nos engole. Andamos de obrigação em obrigação, tentamos cumprir planos que fazemos e refazemos continuamente, porque o compromisso também já não é o que era – aquilo com que nos comprometemos hoje, já não apetece amanhã, e muitas vezes há nesta vontade saltitante um desrespeito pelo outro. O compromisso perdeu o sentido, ou mudou de sentido, não sei bem, talvez tenha assumido novas formas. Fazemos uma agenda de trabalho, uma agenda familiar, doméstica, uma agenda social, mais as agendas dos filhos e a planificação invade tudo. E o sexo encaixa por aqui, tantas vezes entalado e empurrado entre as agendas de um e de outro e muitas vezes também ele planeado. Não há tempo. Não há tempo para sentir, para deixar acontecer, para desejar, para ir ao encontro do outro, devagar.
Por outro lado, nunca antes como agora o nosso cérebro teve tantos estímulos para processar. Nestes tempos modernos há um excesso de estimulação que chega por múltiplos canais, o que está mesmo a provocar alterações no nosso cérebro. Mas esta abundância de estímulos traz benefícios no plano erótico? Não me parece. Demasiados estímulos trazem saturação e banalização. Como salvamos o erotismo neste caldo de hiperestimulação?
É curioso e paradoxal observar que, apesar de tantos estímulos, as pessoas vivem ainda desconectadas do corpo. Vive-se na cabeça, nos pensamentos, nas análises, avaliações, julgamentos, planeamento, entre outros processos mentais. Sentimos o corpo quando ele dói, olhamos para ele para focar as insuficiências e comparar imperfeições. Damo-nos conta do corpo quando nos traz insatisfação, porque não é suficientemente tonificado, magro, alto, ou duro ou outra coisa qualquer que a sociedade dita. E isto não é raras vezes. Damo-nos conta do corpo para sentir prazer? E não só o prazer sexual mas outros prazeres através do corpo. Muitas pessoas têm dificuldade em citar exemplos de experiências sensoriais/físicas prazerosas. Largar os processos mentais e descer ao corpo, conectar com as sensações físicas. Não é disso que se trata num encontro erótico? Acontece tudo no corpo, mas se tivermos desligados dele, imersos em processos mentais, não sentimos nada, nem nos damos conta.
É preciso abrandar para sentir, para observar as sensações. O ato de abrandar altera a experiência. A carga erótica de um beijo improvável, um beijo inesperado. Não falo de um beijo em piloto automático. Não falo dos beijos que fazem parte do pacote do programa daquele dating planeado umas horas antes com um conhecido acabado de conhecer em que tudo isso já era esperado e onde beijar é o menos. Falo de um momento erótico em que beijar é o mais. Beijar devagar. Um beijo que se expande nos dois metros quadrados de pele. Falo de um beijo lento, sem pressas, um beijo que salva o erotismo.
Esta componente sensorial erótica leva-me de volta à música do Pedro, a quem agradeço a música e as canções, “enrolados pelo chão no abraço que se viu, é madrugada ou é alucinação, estrelas de mil cores, ecstasy ou paixão, hummm, esse odor … traz tanta saudade, mata-me de amor ou dá-me liberdade, deixa-me voar, cantar e adormecer….”
Venho em defesa do erotismo e do corpo, um corpo desperto, um corpo atento, um corpo erótico. Não sei como conciliar isto com esta modernidade acelerada, produtiva e consumista. Talvez o erotismo tenha que se reinventar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.