Nos últimos tempos a imprensa tem vindo com alguma regularidade a divulgar notícias relativas ao comportamento desadequado de pais quando assistem às actividades desportivas dos filhos, seja em treino seja em competição. Muitos dos casos divulgados acontecem, tinha de ser, no futebol.
Quem como eu já acompanhou filhos ou outras crianças nesta situação sabe que boa parte do que acontece nem sequer é noticiado. Algumas notas sobre esta questão.
Em primeiro lugar é essencial sublinhar a importância da actividade desportiva de crianças e adolescentes cujo nível de sedentarismo é preocupante e um factor de risco significativo no seu desenvolvimento saudável. Aliás, incompreensivelmente, nos últimos anos a Educação Física tinha sido desvalorizada nas políticas públicas de educação.
Em segundo lugar é igualmente de acentuar a relevância do envolvimento e da participação dos pais nas actividades desportivas dos filhos, como também noutras incluindo evidentemente a vida escolar. Sabemos das dificuldades em conciliar os estilos de vida pouco amigáveis que muitas famílias têm e que se traduzem em menor disponibilidade para tudo o que seria preciso ou gostariam de assegurar com os filhos. No entanto, é sempre possível fazer melhor, muitas vezes é mesmo uma questão de opção. Basta atentar no tempo infindo que algumas crianças passam em espaços comerciais ou trancados num ecrã (pc, tv ou smartphone) para perceber que poderia ser melhor.
Retomando o comportamento menos positivo de alguns pais no contexto das actividades, recordo que em Fevereiro foi notícia o facto de um pai invadir um campo de futebol para agredir um árbitro por ter expulsado o seu filho, um adolescente. Como é sabido, têm acontecido com demasiada frequência comportamentos de agressão a professores pelo que se estranhará que tal aconteça com agentes desportivos. Sinais dos tempos.
Parece claro que a esta atitude não será alheio o clima explosivo que se tem vindo a instalar em torno do fenómeno desportivo, com a prestimosa e esforçada colaboração de dirigentes e “comentadores”, promovendo o risco cada vez maior de violência e agressão e acabando definitivamente com a velha fórmula do desporto como escola de virtudes. Torna-se cada vez mais difícil acreditar nesta ideia. Os recentes episódios em Alcochete são “apenas” mais um passo, gravíssimo e inaceitável, desta escalada.
A questão não é nova, evidentemente. Há mais de duas décadas o meu filho era praticante juvenil de uma modalidade colectiva num clube pequeno, hóquei em patins. Por curiosidade, era guarda-redes, uma posição ingrata e que me deixava sempre inquieto com os riscos, mas de que ele gostava e na qual se empenhava em conjunto com o grupo de que ainda hoje conserva amigos.
Nos treinos, mas sobretudo em jogos, o comportamento a que assistia por parte de alguns adultos (pais) era, por assim dizer, muito “envolvido” ou “comprometido” como hoje se diz. Nem sequer falo das “orientações” constantes substituindo o treinador ou dos incentivos, da exigência e da pressão sempre ruidosas. Falo de em muitos recintos ver miúdos a ser insultados e ameaçados. Numa circunstância um dos desportistas foi mesmo agredido por uma senhora (mãe?) quando patinava junto à lateral do campo. Quando assistia a jogos em alguns locais o ambiente era preocupante e intimidatório e posicionava-me discretamente com algum receio de expressar algum incentivo à equipa visitante. Estamos a falar de jogos entre crianças o que mais lamentável se torna e não deixa de ser um espelho de um quadro de valores instalado. De entre estes valores releva um entendimento, de que aqui já falei, a pressão familiar, mas não só familiar sobre os mais novos no sentido, diria a exigência, de que têm de ser excelentes em tudo o que fazem. Só a excelência vence, muitas vezes não importa a que preço e algumas crianças e adolescentes pagam-no caro.
Sei que existem entidades desportivas que sugerem ou determinam que os pais não assistam aos treinos dos filhos. Não simpatizo com esta decisão mas compreendo a opção em nome da tranquilidade e da qualidade da actividade.
No entanto e apesar de tudo isto acontecer, é verdadeiramente justo afirmar que apesar das actuais melhores condições, designadamente no que se refere ao futebol que praticamente já não se pratica na rua com a baliza feita de pedras ou com as mochilas da escola, são a motivação e o esforço de alguns pais e de outras pessoas que num voluntariado de saudar permitem que muitas crianças e adolescentes pratiquem algum desporto em clubes e estruturas muito pequenas e com meios e recursos insuficientes.
Para finalizar e ainda sobre a forma como alguns pais se relacionam com os filhos a propósito da prática desportiva deixo uma história relativa a uma cena a que assisti e que parece elucidativa de uma atitude muito generalizada.
Actores principais – Pai e filho com uns 6 ou 7 anos
Actores secundários – A mãe que entre chamadas no telemóvel grita incentivos para o filho
Cenário – uma zona relvada com dois pinos colocados de forma a simular uma baliza.
Assistentes discretos – o autor destas notas
Guião – O pai ensina o filho a dar pontapés numa bola de futebol em direcção à baliza dos pinos
Cena e diálogo (reconstruído a partir de excertos ouvidos pelo assistente discreto)
O pai apontando para uma zona do pé do miúdo que tem botas de futebol calçadas – Já te disse que é com esta parte do pé que tens de acertar na bola, vê se tomas atenção.
O miúdo em silêncio faz mais uma tentativa que não sai muito bem, não acerta na baliza.
Assim não vale a pena, não fazes como te digo, tens que estar concentrado, (aqui lembrei-me do Futre, um homem concentradíssimo e, certamente por isso, um grande jogador).
Mas eu dei com esta parte.
És parvo, se tivesses dado com essa parte a bola tinha ido para a baliza. Faz outra vez.
O miúdo com um ar completamente sofredor executa o que em futebolês se chama o gesto técnico e a bola teimosamente voltou a não sair na direcção desejada.
Pareces burro. Se queres ser jogador de futebol tens que te aplicar, (será que o miúdo quer mesmo ou será o pai que quer viver um sonho que foi dele e que agora cobra no filho?).
O miúdo, desesperado, sentou-se no chão com ar de quem espera o fim do jogo.
O pai, irritado, mandou a bola para longe com um forte pontapé.
O assistente discreto pensou que se o árbitro tivesse visto o pai merecia um cartão vermelho por comportamento incorrecto.
Provavelmente … seria só mais um no jogo da vida deles.
(Texto escrito de acordo com a antiga ortografia)