“Lhe entrego dinheiro, prometo, tenho dinheiro fora. Não duvide: são cifras, maquias e quantidades. Tenho e tenho. E dou-lhe tudo, totalmente. Mas me traga chuva, uma porção de chuva boa, grossa e gorda. […] Me invente, rápido, uma urgente chuvinha”
Mia Couto, “A última chuva do prisioneiro”, Contos do Nascer da Terra.
Este texto de Mia Couto é dos que mais me fascina, leitura após leitura. Um recorrente prisioneiro, educado e criado pela mãe numa profunda relação com a chuva, chega ao seu momento, talvez final, e pede uma última chuva. Essa chuva é condição de liberdade e é dimensão de identidade. É umbilical, como Mia Couto afirma mais à frente.
Quando a chuva nos falta, mais que pão para a boca. Quando uma seca se prolonga a um Outubro que já devia ter tido muitas águas. Quando um quadro de alterações climáticas nos avisa que isto será cada vez mais a norma e não a excepção, urge ter coragem de ir ao fundo dos dramas para, qual catarse, poder sair e reconstruir.
E as imagens, fotográficas ou orais, abrem a porta para esta estado de coisas que, sendo apocalíptico, pede grandes gestos, estratégias arrojadas e inovadoras, não “paninhos quentes” e não dinâmicas de Manutenção.
Numa imagem que poderia ser vinda de um quadro bíblico ou mitológico de fim dos tempos, numa das milhentas reportagens em que os nossos meios de comunicação se multiplicaram em busca de sangue, uma senhora idosa referia que o marido, à noite, perante o avanço do incêndio, disse que parecia o som do mar.
Sejam as águas do abismo, num regresso ao primordial, seja o fogo destruidor de um julgamento sem depois, a imagem ecoa em milhares de anos de estruturas de mentalidade. É verdade que, tão distantes e tão próximas, ambas são sinónimo de vida, mas também de morte. Neste caso, a morte é o denominador de todas as imagens que criamos.
Homenageando os mortos, o fogo tem sido uma imagem de morte que vai muito além das dezenas largas de falecidos que este Verão e Outono ceifou para os Campos Elísios, onde a Cultura Clássica colocava em última morada os heróis. São heróis de uma morte brutal, indigna do tempo em que colocamos satélites no espaço.
Mas o mais brutal não são as mortes, os falecimentos. O mais brutal são o que elas mostram acerca dos que ficámos. E o luto é, naturalmente, algo que teremos de fazer no colectivo. Mas estas mortes são muito mais que as mortes dos ente-queridos de alguns de nós. Estas mortes são a morte de um modelo que, nos remetendo para uma orfandade, nos obriga a recriar e a assumir responsabilidades – responsabilidades que não são políticas, que essas são fácies; são mentais, do colectivo e não de um “bode expiatório” a sacrificar.
Não sei o que o Governo levará o Estado a formular, mas sei que todos temos largas culpas no abandono a que votámos muito do nosso património. E esta questão não é, minimamente, económica. A economia implicada é outra, de sentimentos, de identidades e de responsabilidades.
Tantas foram, e são, as desculpas para abandonar o torrão de terra que nutriu os antepassados. Não se trata apenas de desleixo, de falta de vontade ou de incapacidade em cuidar o que é seu. É muito pior: é falta de respeito pelos antepassados, pelos avós, por todos os que viveram uma vida dura nessas terras de florestas bravias, e que burguesamente rejeitamos como algo exterior a nós. E é exterior, mas apenas o é na nossa pobreza de não herdar o significado colectivo dessa terra.
Antes de atirar pedras, que todos nós façamos uma introspecção, dando conta do abandono, mental, cultural e económico, a que votámos aqueles de que nascemos através da forma como rejeitámos as suas memórias.
Muitos migraram para outras paragens, noutros recantos do orbe terrestre, e estão longe. Muitos migraram para uma qualquer Linda-a-Velha e fingem estar longe. Como a personagem de Mia Couto, somos prisioneiros das memórias umbilicais, especialmente das que queremos esconder e esquecer.
Pedimos uma chuvinha como se ela, num sentido salvífico, nos desse tudo o que abandonámos, voltando a lavar os remorsos. Enquanto ela não vinha, reconfortados nas nossas vidinhas, acusávamos bombeiros, protecção civil, autarcas e governantes por não terem feito o que era nosso dever.
Indiferentes perante o que se foi passando ao longo de dezenas de anos. Inúteis no momento actual, somos parceiros no semear da grande incineradora onde decidimos esconder, ou mesmo, matar, o nosso passado rural.