Estava um lindo dia de sol e era sábado: excelente dia para continuar a revisão de literatura no jardim aqui perto de casa. Uns morangos fresquinhos, uma garrafa de água, um lenço grande para estender sobre a relva, calções e t-shirt, ténis calçados, e a mochila às costas com o material de trabalho. Ah, e tão importante: os óculos de sol, graduados. Que bom. Tanta coisa boa!
Já sentada a ler não pude deixar de sentir os cheiros. Esta primavera trouxe um cheiro a flores e a verde que há muito não sentia. E veio de mão dada com aquele calorzinho de Verão. Há pela cidade uns pássaros verdes que comunicam imenso; uns dizem que soltaram os papagaios e outros que são filhos de um casal de pássaros das Américas. Uma abelha gigante, preta e amarela, parece vir perturbar a tranquilidade que preciso para trabalhar, Não, afinal não. Passou para poisar numa planta e gozar os seus próprios prazeres. Tudo está perfeito! Aquela brisa suave, perfumada, aquele calorzinho na pele descoberta, hmmm! que bom poder desfrutar destes pequenos prazeres de existir!
De repente, a minha consciência foge para longe. Prende-se às imagens das crianças sírias e do resto de um povo que podia estar a gozar desta mesma tranquilidade e pequenos prazeres mas que o poder e a ganância alheia vieram roubar ao que lhe pertencia por direito. O que devem cheirar? O que vêm os seus olhos? O que ouvem? Não devem ter jardins; não devem ter estes pequenos-grandes prazeres que tomamos aqui por adquiridos quando decidimos: “hoje está um lindo dia; vou ler para o jardim; e já agora, levo uns morangos e água que tirei do frigorifico”. Que caminhos devem percorrer para chegar de uma lado ao outro da mesma rua? Seis anos assim. Mais de seis anos!
Frigorifico, eletricidade, água… dizem-me os amigos sírios refugiados que estão em Lisboa, que não falam com os pais há mais de duas semanas. Não há água e eletricidade corrente, como aqui. Sempre houve mas a guerra destruiu tudo. Os últimos bombardeamentos perto de casa cortaram as comunicações com a família que ainda lá está. E imagino que o mesmo podia estar a acontecer aqui. Sim, aqui mesmo. Porque o mundo não está melhor hoje do que estava há uns anos atrás! Triste, mas verdadeira e preocupante constatação. Os líderes que ontem baniram os vistos de entrada dos sírios no seu pais, hoje comovem-se com as crianças que morrem e são mutiladas. E mandam rebentar bombas onde já rebentam tantas. Dizem os meus amigos Sirios e Iraquianos que nas cidades mais centrais já não se fala árabe; só se ouve inglês, francês, outras línguas europeias, e russo. A comida que se vende também já não é a árabe. Tudo Europeu! Hipocrisia!
Estamos cansados destas mortes e matanças. Mas não antecipo um mundo melhor e mais pacífico. Os líderes das maiores potências estão embriagados de poder e loucura. E as pessoas deixaram de reagir, de se indignar, e ir para a rua manifestar. Dizem que é porque comemos demasiado açúcar e isso nos deixa um tanto anestesiados, inertes. Verdade ou não, estes prazeres que hoje temos como aquele que eu descrevi, senti que podia deixar de ter. E da maneira como se desenha o presente, o futuro, não muito distante, faz pensar que podíamos ser nós. Sim, porque estamos condenados às decisões de alguns líderes absolutamente embriagados.
Lamento escrever com tanto descrédito e falta de esperança, mas não sei se um destes dias terei de atravessar jardins de pedra para chegar a algum lugar onde os cheiros serão os dos mortos; os sons serão só os de dor e angústia; e onde a esperança não chegará mais com Primavera nenhuma.