Aconchegam a viola entre os braços, já de ar cansado e noite dentro. Olham para o papel para relembrar as rimas e afinam a garganta e os instrumentos como se fossem profissionais. Amadores que sei serem, estou nos ensaios do grupo dos Rapazes das 12 Ribeiras a preparar o ouvido para uma voz pouco profissionalizada, com um sorriso de compaixão mesmo a jeito de se fazer notar. Eis quando sai garganta fora, uma voz que levada a qualquer palco profissional, faria muitos aplaudir de pé. A ela junta-se uma outra e depois uma terceira…fico estasiada com o ritmo, com as graças das letras e com as vozes que as interpretam!
São mais de 3 mil os talentos escondidos no meio do Atlântico, perdidos na lavoura, na função pública ou nas carpintarias da Ilha Terceira. 3 mil corações apaixonados pela arte dos palcos que só no Carnaval se enchem de coragem para se deixar levar por aquilo que lhe faz brilhar os olhos de verdade: a arte de representar.
Um fenómeno, mais conhecido nos Estados Unidos do que no Continente (não fosse esta uma ilha de emigrantes), que os faz sentir meio abandonados e fechados sobre si próprios, mas que nem assim desmotiva o povo da ilha. Esta é uma festa para o povo. Feita pelo povo. Não há, na Ilha Terceira, quem diga que não gosta do Carnaval terceirense. Não há quem não o considere um fenómeno social que só quem bem o conhece o compreende e que pode ser um dos motivos da Terceira ser também conhecida pelo Parque de Diversões.
Eu fui conhecer esta organização desorganizada e levei umas horas a perceber a diferença entre Danças e Bailinhos e que Bailinhos não são os homens e as mulheres a dançar no salão de festas da aldeia. São na verdade grupos de gente cheia de alma e criatividade, que se fecha humildemente entre 4 paredes durante mais de 2 meses, todos os dias à noite, para escrever rimas e fazer músicas, escolher os assuntos (os temas que levam a palco chamam-se assim…), ensaiar, comer, beber, cantar e dançar…
A tradição remonta não se sabe bem a quando. Diz-se que pode ter influencias das danças medievais, no teatro de Gil Vicente ou do Brasil. Ou até noutros, sabe-la lá! O que é certo é que na época dos descobrimentos, por esta ilha, passavam povos de todo o mundo e que qualquer um podia ter deixado influencias. Desde sempre os terceirenses se lembram que acontece este Carnaval e que é o mais bonito do mundo. São suspeitos, é verdade, mas também é verdade que é único!
Imagine mais de 60 grupos, com 20 a 30 pessoas cada. Mais de 20 atuações, por grupo, em 4 dias e em cerca de 40 locais diferentes. Imagine milhares de pessoas a “correr danças” (pessoas que percorrem os locais onde acontecem os Bailinhos” para assistir aos espetáculos) e a “gastar da mesa” (a comida que se partilha entre todos), a rir e a fazer rir com as graças que se prepararam nos últimos meses. Drama ou comédia, sátira social. São os acontecimentos que marcam a ilha e o mundo que são levados a palco.Dos 8 aos 80 anos, todos têm o seu lugar. Desde os que nunca se sentaram num banco de escola aos mais graduados. O Carnaval da Terceira é de todos e para todos. E é endémico. Lá, todos são artistas. No palco ou na produção. E de lá acaba por sair gente para os palcos da música, do teatro ou do design. Desta ilha vieram nomes como os de Nuno e Luís Gil Bettencourt (a que se junta agora também o da filha, Maria Bettencourt, que está a dar passos importantes nos Estados Unidos), o designer da Lacoste Luís Oliveira Baptista, Luís Filipe Borges, humorista e apresentador ou Vitor D´Andrade, ator atualmente na TVI.
O carnaval tem uma enorme importância na vivencia social e económica da ilha. Tudo pára, para que todos possam ir viver o carnaval. É um motor para a economia local ou não fosse a economia tudo o que mexe…
Estima-se que possa representar 5% do PIB. Estima-se que cada pessoa tenha um gasto com as suas próprias roupas, sapatos, idas ao cabeleireiro e maquilhagem, na ordem dos 500 a 700 euros. Fazendo as muitas contas que ele envolve, estima-se que o Carnaval possa gerar cerca de 40 milhões de euros por ano. E sim, estima-se porque nem esse levantamento está feito pelas entidades oficiais, de tão “só nosso” que ele é, como dizem os locais.
Conta-se que há gente que fica com os dedos em sangue de tanta viola tocar, ou sem voz de tantas horas a desgastar…talvez por isto se chame Carnaval dos Bravos! Acontece porque a gente da Terceira quer que aconteça e nem para todos os que lá moram, o Carnaval se deve profissionalizar e tornar-se num produto turístico.
Este é um fenómeno que está a começar a estudar-se e que no futuro pode ser diferente. Goste-se mais ou goste-se menos, esta manifestação cultural tem tudo para fazer explodir uma indústria criativa na Ilha Terceira. O que falta? Descaramento! O mesmo descaramento que os terceirenses levam para o palco, é o que faz falta à marca Açores para o fazer chegar ao mundo.
Se somos o país que tem mais passado para deixar ao futuro, então preservem-se as tradições e os costumes, mas partilhem-se com quem as voltou a valorizar e está disposto a pagar para as conhecer. Enquanto isso não acontece, como diz a canção de despedida do grupo a que assisti aos ensaios, os terceirenses lá vão juntos, lado a lado neste trilho, num caminho enfeitado pelo brilho de Carnaval…
Inspirada por tanto talento e em jeito de homenagem
atrevo-me a fazer uma rima para o fim da minha viagem
O que ali acontece por dentro, destrava mil emoções
mas importa trazer para o centro
o que mexe com os corações
Obrigada, Terceira
por guardares dentro de ti tamanha brincadeira
agora importa fazer dela
uma enorme faladeira.
Depois de tudo isto, e de 4 dias na ilha a viver o espírito, só fica a faltar saber mesmo quem é “tê pai, jovê talento”*!
Até breve Terceira.
“Quem é tê pai”, é uma expressão muito usada entre terceirenses para saber de quem é filho determinado individuo.