A leviandade com que tratamos os atentados terroristas atribuindo-lhes a denominação “islâmico”, revela um enorme desconhecimento sobre uma religião e seus desenvolvimentos ao longo dos tempos e das culturas que se foram islamizando. Culpar os muçulmanos, ou acusar os seus líderes religiosos de conivência com doentes mentais, assassinos, organizações fundamentalistas e terroristas, resulta de ignorâncias generalizadas sobre o Islão e sobre as sociedades muçulmanas.
Para além das razões, históricas, de convulsões e conflitos fundamentados em interpretações religiosas, já vimos, tanto no Cristianismo como no Islamismo, que para além de questões de luta por poderes geo-estratégicos e financeiros, ou do facto de o judaísmo e o cristianismo nunca terem reconhecido o Islão como “Religião do Livro”, creio que o problema do desconhecimento e da consequente estigmatização social dos muçulmanos tem fundamento num laicismo radical. O laicismo é, a meu ver, uma das maiores causas do choque, não de civilizações, mas de ignorâncias.
A saudável separação entre os poderes do Estado e os poderes das igrejas foi um passo importante na história da modernidade ocidental. Porém, se a laicidade torna clara a questão da separação destes poderes, ela defende a liberdade de expressão e a inclusão da diversidade. Quando imaginamos uma família com avós, pais e filhos, sabemos que cada um deles tem a sua personalidade, as suas características muito próprias e diferenciadas, que podem e devem ser livres, desde que a liberdade de uns não colida com a possibilidade de liberdade dos outros, e que mesmo apesar das diferenças, são todos parte de uma mesma família e constroem o bem comum. Uma sociedade que defende os princípios republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade, é igualmente uma grande família. E é nessa família mundial que temos de saber respeitar estes valores e práticas que só dignificam e enobrecem a condição humana e de cidadania.
O problema do laicismo é o de que ao propor a separação entre os poderes secular e religioso, acaba por impor uma separação entre fé e razão. Ora, nem todas as sociedades concebem a existência humana separando uma de outra. O treinador da seleção nacional, Fernando Santos, iniciou o seu discurso da vitória no Euro 2016, na conferência de impressa, assumindo isto mesmo: que a sua vitória material resultava do serviço a uma causa espiritual. E não se pode negar que os seres humanos vivem essas duas componentes como parte de si mesmos.
Os muçulmanos, por exemplo, entendem que a mais importante Jihad é a da possibilidade de conseguir o equilíbrio entre uma e outra dimensões das suas vidas. A Din e a Dunya, a vida espiritual e a vida material devem ser conduzidas sem que uma se sobreponha à outra. Algo difícil numa realidade obcecada com o capitalismo materialista. Nesta perspectiva a ciência e intelectualidade trazidas pelos árabes à Europa resultou precisamente de um assunto de fé: o alcorão manda que se procure o conhecimento “nem que para isso tenhas de ir até à China”. O xiismo não é outra coisa senão a busca do sentido da vida pela ‘aql (intelecto) – a faculdade concedida por Deus para que possamos conhecer e entender a existência e a criação que está para além da experiência racional positivista. Esta pode ser a razão porque encontramos sociedades e indivíduos muçulmanos proeminentes nas ciências duras, na economia, no cinema, pintura, música, arquitetura, engenharias, tecnologias de ponta Este é também o princípio orientador de todas as ações e iniciativas da Rede para o Desenvolvimento Aga Khan.
O maior problema que tem contribuído para o dramático “choque de ignorâncias”, e que vem desde o século XIV, é também, entre outras circunstâncias, a ausência da Teologia e Filosofia no mundo muçulmano, o que contribui sobremaneira, para o atraso na intelectualidade racional de uma substancial proporção da população muçulmana. As razões para este acontecimento encontram-se bem documentadas nos manuais de história civilizacional.
Todos os “ismos” são perigosos. E nenhum é mais inocente que outro. Como lembra Amin Maalouf:
”O século XX ter-nos-á ensinado que nenhuma doutrina em si mesma é necessariamente uma força libertadora: todas elas podem ser pervertidas ou tomar a direção errada; todas têm as mão ensanguentadas – o comunismo, o liberalismo, o nacionalismo, cada uma das grandes religiões, e até o secularismo. Ninguém tem o monopólio no que respeita aos valores humanos”.
Ao empurrar para a esfera do privado, tudo o que diga respeito à religião, o laicismo, impede que haja uma convivência saudável entre religião e vida secular. Duas perigosas consequências têm daí resultado: por um lado, deixar que rabis, padres e imames passem o conhecimento sobre as religiões e a fé pode promover um endoutrinamento radicalista e proselitista. Mais, porque essa formação passa a pertencer a uma esfera identitária que separa a existência de cidadania da de crente religioso, ela contribui para a construção de identidades de exclusão social. Para muitos adolescentes, ou se é secular ou muçulmano. E não tem de ser assim. Depois, temos o problema de nunca saber que tipo de conhecimento e formação dão estes sacerdotes, porque nem sabemos que tipo de qualificações académicas têm para o efeito. Os resultados, temos visto, são catastróficos. O Islão de que fala um sacerdote saudita ou paquistanês não é aquele de que fala um líder religioso muçulmano português ou inglês ou australiano. Por outro lado, o laicismo tende a promover a formação de uma intelectualidade desinformada. Pelo menos, no que toca às religiões. Ela é deficitária, portanto. Um exemplo muito interessante foi o de Julia Kristeva que se surpreendeu que perante a acusação de Milosevic por crimes de genocídio, e necessidade do julgamento no Tribunal Internacional de Haia, a posição do sacerdote ortodoxo era contrária à do Papa Católico. O primeiro absolvia e o segundo era a favor do julgamento e punição. Para Julia Kristeva, até àquele acontecimento, o Cristianismo era uma realidade monolítica. E é precisamente dessa intelectualidade deficitária de que falo.
O ensino das religiões não deve ser o conhecimento das práticas. As religiões não se resumem a práticas. Elas são o resultado de uma mundividência onde os princípios, valores, ética e moral visam orientar uma sociedade. Geralmente, trazem uma visão sobre a ordem social, política e humana. Para ilustrar melhor o que digo, não é possível compreender o capitalismo chinês se não conhecermos o Confucionismo. Não se compreende o capitalismo alemão sem se conhecer a Ética Protestante, tal como explica Max Weber. Similarmente, não se podem compreender as Cruzadas e a Jihad se não conhecermos as visões salvívicas do cristianismo e do islão. Nunca será possível perceber porque deixaram os indianos que os árabes navegassem nas suas águas e prosperassem como aconteceu, se não conhecermos o sistema de castas do hinduísmo!
A laicidade inclusiva, que prefiro chamar de “Ética Cosmopolita”, que defende e promove o conhecimento do “facto religioso”, das componentes e discussões intelectuais em redor das crenças e valores, dos conceitos centrais a cada uma das religiões do mundo, e dos respectivos avanços e recuos da história das civilizações promovem sociedades informadas. O inverso torna o conhecimento e o saber amputados; e o resultado mais evidente que temos constatado não é um Choque de civilizações mas sim, um “choque de ignorâncias”.