A profissão médica é conhecida por ser muito exigente, quer ao nível da sua prática, quer nos conhecimentos científico que o clínico deve possuir, quer nas exigências deontológicas (com um conjunto de regras e princípios muito rígidos).
Não admira por isso que um dos problemas mais importantes com que o SNS se defronta em termos do seu funcionamento é a diminuição da satisfação pessoal/profissional dos clínicos responsáveis pelos cuidados prestados aos doentes (em que incluo também os enfermeiros, os farmacêuticos, os fisioterapeutas, etc.).
Profissionais equilibrados e felizes, realizados na sua profissão, prestam cuidados de melhor qualidade e aumentam simultaneamente a satisfação dos doentes. Isto é intuitivo, mas tem também sido detectado em diversos estudos realizados um pouco por todo o mundo.
Um recente inquérito em que participaram 1.577 médicos (representando cerca de 20% dos inscritos na Secção Regional do Centro Ordem dos Médicos) propôs-se analisar o síndrome de “burnout” – que se pode traduzir livremente por síndrome de esgotamento. Este fenómeno inclui 3 domínios: exaustão emocional (perda de interesse na prática clínica), despersonalização (atitudes cínicas e indiferentes aos doentes) e falta de satisfação profissional (diminuição da sensação de dever cumprido e baixa autoestima).
O estudo concluiu que 41% destes profissionais de saúde apresentou sinais de exaustão emocional, 25% obteve pontuação elevada numa escala de depressão, 17% apresentou sinais de despersonalização (atitudes negativas, cinismo, insensibilidade e irritação) e um quarto afirmou não se sentir realizado profissionalmente. Sete por cento dos inquiridos apresentaram sinais de ‘burnout’ elevado (conjugação de exaustão, despersonalização e não realização profissional), sendo que, desses, mais de metade têm idades compreendidas entre os 26 e os 35 anos. O estudo indica ainda que quase 20% dos médicos trabalha mais de 60 horas por semana.
Que fenómeno é este e porque todos temos de estar preocupados com ele?
A exaustão física e psicológica pode existir em vários tipos de profissões, mas é mais frequente naquelas que, como a medicina, combinam grande responsabilidade e pressão elevada com horários prolongados e condições de trabalho sentidas como deficientes. Existem estudos europeus que provam que é esta última percepção que se correlaciona com os níveis de exaustão emocional e despersonalização (Eur J Intern Med 2006;17:195–200).
Todos devemos estar preocupados com este fenómeno, já que ele se pode reflectir na qualidade da prática clínica e, portanto, nos resultados em saúde.
A solução passa, segundo peritos em psicologia do trabalho, por várias intervenções. A primeira é o suporte directo aos médicos com dificuldades, através de programas de suporte psicológico que os apoie no balanço entre a profissão e a vida privada, ensinando a adaptação ao stress da profissão e clarificando que têm de facto um problema (uma boa parte dos médicos não aceita a ideia que pode ter este tipo de problemas, portanto não procura ajuda). Em segundo lugar, as transformações técnicas do local de trabalho devem ser feitas envolvendo os profissionais, de maneira a que aqueles ajudem a que a prática seja mais humanizada e menos burocrática (são bem conhecidos os problemas com os processos clínicos electrónicos, uma técnica em si mesmo valiosa, mas que pode deteriorar as condições da consulta a níveis abissais, como muito bem sabem os médicos que trabalham com programas disfuncionais que obrigam a longas esperas e grandes níveis de frustração). Este envolvimento dos profissionais na prática é crucial, mas na medicina isso raramente acontece. Todas as transformações na indústria aeronáutica são feitas com o acordo e julgamento dos pilotos mais experimentados, entre nós ninguém consulta os médicos para saber o que é que estes necessitam na prática… Finalmente, o SNS deve proporcionar aos seus profissionais uma cultura de crescimento individual, reconhecimento e possibilidade de sucesso individual e respeito pela sua identidade.
Os doentes (e os pacientes) podem também influenciar as mudanças para a melhoria do burnout médico, exigindo às hierarquias responsáveis soluções bem testadas para este problema, que mais dia menos dia, nos pode afectar a todos.
O síndrome do burnout médico é um problema de todos nós, já que nos pode atingir directa ou indirectamente numa qualquer altura da vida.