Decididamente, a problemática da eutanásia chegou para se colocar nas nossas agendas como uma das questões mais importantes dos próximos meses, uma questão-fracturante, como normalmente se caracterizam estas dúvidas que a sociedade recorrentemente apresenta perante questões relacionadas com a vida.
De resto, as sociedades europeias mais a norte já convivem com o incómodo desta questão há algum tempo, desde a última década do século passado, quando os primeiros estados legislaram a favor desta possibilidade de o doente terminar coma sua vida em situação de doença irrevogável e dor profunda.
Muito e variado se poderia elencar sobre posturas de tradições, culturas e religiões em relação a esta questão. Mas, e circunscrevendo-nos apenas ao nosso meio cultural, a questão da eutanásia vai muito mais longe na nossa mentalidade do que podemos supor. E vai, em primeiro lugar, à própria definição de propriedade que cada indivíduo tem sobre si mesmo. Isto é, posso eu, ou qualquer um de nos, livremente maltratar o nosso corpo, podendo, inclusive, levar o dito corpo à morte?
A dimensão fundamental vem do campo religioso em que a vida é dada e tirada por Deus. Tão simples quanto isto: nenhum humano tem o direito de se sobrepor à vontade divina. No adagiário, falando do momento da morte, dizemos que “chegou a hora”, numa quase predestinação em que o corte do fio da vida estaria já definido, restando saber quando teria lugar esse acto da tesoura que simbolicamente encontramos tantas vezes na decoração de jazigos nos cemitérios oitocentistas.
Mas a questão acaba por ser ainda mais complexa, imiscuindo-se com a linguística e com a história que as palavras e os pensamentos vão criando no correr desse fio do tempo. E correria o ano de 1998 quando na Biblioteca Nacional de Portugal, ao percorrer o catálogo dos Reservados, me deparei com um título que me chamou imediatamente à atenção. Dizia: Novo ministro de enfermos ou prática de ajudar os enfermos a bem morrer. Era uma obra editada em Portugal em 1776, da pena de Baltazar Bosch de Centelhas e Cardona (1645-1714).
O título deixou-me atónito e tive de ver de que se tratava. Era, nada mais, nada menos, que um longo guia, um tratado teológico sobre a chamada Extrema-unção, o sacramento dado no leito de morte. Era um livro sobre esses momentos derradeiros, sobre a forma e o sentido desse sacramento final, tido de tal forma como fundamental que é caracterizado em título como “prática de ajudar os enfermos a bem morrer”.
É verdade que esta obra não era, na nossa concepção da palavra, uma obra sobre eutanásia, mas era-o sobre “eutanásia”, na medida em que a expressão forte usada é essa mesma: eu + tanathos = “boa morte”, no fundo, o que é dito no final do título desse manual: […] ajudar os enfermos a bem morrer.
E a situação em pleno século XVIII, ou mesmo já no século XIX, era de verdadeiro pânico em torno do “bem morrer”. Popularizara-se uma crença, profundamente enraizada, sobre a dificuldade de morrer em caso de graves pecados ou vida contrariamente vivida em relação às normas da Igreja Católica.
Neste sentido, a boa administração da Extrema-unção era, até na nossa acepção, eutanásia, pois apenas ela poderia, segundo se cria, libertar o moribundo da dor espiritual e mesmo física resultante do pecado, possibilitando que a morte chegasse sem dor.
Para se perceber como os paradigmas de pensamento seguem até mais perto de nós, recupero uma personagem de outra das minhas pesquisas em torno do universo religioso português: Pe. José de Sousa Amado, nascido em 1812, professor no Liceu Nacional de Lisboa e membro da Relação Patriarcal. Trata-se de um profícuo autor que percorreu muitas das grandes questões fracturantes da sua época.
Para este Padre, o protestantismo e a maçonaria são a porta de entrada da filosofia moderna, do racionalismo e da ciência, o que levou à degenerescência e ao afastamento da sociedade a Deus. Voltaire, a par com os homens da Revolução Francesa, é o grande criminoso que lançara no mundo os elementos que o conduziram ao desaire da sua época, o mundo resultante das revoluções liberais. Na sua violenta argumentação, inflamando medo aos seus leitores, vai buscar o exemplo de Voltaire para mostrar o tormento que teve no leito da morte por não ter recebido a Extrema-unção… O sacramento era, de facto, a forma de “bem morrer” ou, indo ao étimo grego, a eutanásia da sua ápoca.
Nesta personagem encontramos muito do que estaria a ser posto em causa por meados do século XIX. Este Padre que, felizmente, muito nos deixou de escritos, é uma porta de acesso privilegiada aos conflitos que a sociedade portuguesa gerou perante as questões de fundo que a atravessaram (entre muitas obras, são fundamentais para estas questões: Os protestantes desmascarados… 1873; Exposição contra os protestantes …, l875).
Ler a obra de Amado é presenciar um enorme testemunho de força e coerência que, logicamente, não é o nosso. Entrar por dentro das suas argumentações, das suas ideologias, das suas vorazes e intolerantes críticas, é perceber o que estava em jogo a nível de princípios organizadores do tecido e dos valores sociais.
No limite do que podemos conceber para esta postura religiosa e de mentalidade, o Pe. José de Sousa Amado escreveria várias obras sobre a necessidade de respeitar e cumprir os sacramentos instituídos. Tem textos que tratam a necessidade da confissão auricular, sempre mostrando a sua funcionalidade na salvação vindoura. Encontramos ainda um livro que é quase um manual direccionado para a Confirmação. Temos um texto sobre a Primeira Comunhão. Outro sobre as indulgências, é claro. E, por fim, a situação do sacramento junto ao leito de morte.
Destas obras, é esta última a única que tem um claro tom polemista e interventivo fora do estrito âmbito da Igreja Católica. O volume em causa é um apelo a que se procurem apenas os médicos que não descurem, para além da cura física dos males do doente, a necessidade de o moribundo não morrer sem o sacramento final (Cautela com os medicos ou observações e exemplos sobre a conveniencia e necessidade de não convidar nunca senão os medicos religiosos, e de rejeitar sempre os medicos ímpios, 1858).
Nesta obra é interessante uma certa maleabilidade do discurso, muitas vezes fundamentalista e radical, de Sousa Amado. Aqui, sabendo-se lido por indivíduos fora do seu horizonte de normal argumentação, procura uma justificação que é quase do campo da psicologia: não só se deve receber a Extrema-unção por motivos de salvação eterna, como por descanso e conforto no momento da morte para o doente que, sabendo-se ungido, sofre menos com a tormenta final. Mais uma vez, uma metodologia para uma “bem morrer”.
Tomando José de Sousa Amado como um fóssil de uma época, de uma conjuntura prenhe de questões fracturantes como foi a passagem do chamado Antigo Regime ao Liberalismo, somos levados a compreender que a eutanásia, seja a do século XVIII ou a dos nossos tempos -que de forma tão sublime vemos na obra cinematográfica de Denys Arcand, As invasões bárbaras- se encontra muito para além das problemáticas que podem ser levantadas pela morte física.
Muito de espiritual tem a noção de vida e de morte e, por conseguinte, tudo o que nelas tenha implicações. Estamos numa época em que os Cuidados Paliativos redefinem a dor; Estamos
num momento em que as práticas espirituais, especialmente as de origem asiática, parecem ter ainda tanto a dar no campo das terapêuticas, nomeadamente no controle da dor. Onde ir buscar critérios sólidos para definições éticas tão complexas?
Seguindo José de Sousa Amado e os restantes Padres que nos séculos XVIII e XIX trabalharam a questão da “boa morte”, o que interessa é, com dignidade, procurar a tal “boa morte”. Para isso, precisamos de reflectir sobre a serenidade nos e dos últimos momentos.
A única coisa certa, mesmo seguindo a via do que hoje se entende por eutanásia -e que é o meu caso- é que a discussão não pode, por nada, circunscrever-se a uma contagem simples de votos entre quem, à partida já é a favor ou contra.
Há que debater, finalmente, numa sociedade que se afastou da morte, esse lugar-comum que é aquilo para que todos caminhamos. É esta a oportunidade, entre contas de PIB, de défices e de IVAs, de regressar um pouco ao essencial.