Nos dias que correm, é fácil dizer que é necessário um espaço sobre Religião num periódico de dimensão nacional. Esta verdade insofismável surge de uma crescente tensão secularizante que nos invadiu desde a década de noventa do século passado, com especial ênfase depois de 2001.
O importante desta alteração de pensamento dominante reside no facto de, finalmente, os meios culturais, políticos e académicos terem dado um espaço à reflexão ao conhecimento sobre o chamado Fenómeno Religioso. Contudo, esta necessidade de olhar para esta realidade humana e social é o reflexo de uma visão apriorística que valoriza o excecional em detrimento do comum.
De facto, numa mecânica em tudo alimentada pelos próprios meios de comunicação, o drama, o sangue e a violência são material de audiências e de sobrevivência de um jornalismo cada vez mais dependente de uma concorrência onde nem sempre é a qualidade que dita as regras, mas sim o sensacionalismo e o populismo.
Ora, nada há de mais errado no sentido de uma reflexão séria sobre o Fenómeno Religioso que o circunscrever ao que mediaticamente merece títulos e aberturas de noticiários. O que nos interessa, se queremos compreender as religiões, é deslocar o nosso pensamento para o aparentemente insignificante, em vez de nos centrarmos na valorização do ato terrorista.
Não é que o ato que marca a história não seja importante, mas ele é o reflexo de algo mais profundo. E apenas conhecendo essa dimensão profunda podemos criar instrumentos que nos permitam compreender, prevenir e lutar contra esses atos violentos. O “pré-conceito” do valor dado ao acontecimento excecional, quando o fundamental se encontra nas estruturas de pensamento, nas formulações inconscientes que trazemos dos séculos de cultura e de visões, impede-nos de ver e de perceber como pensam os nossos concidadãos.
Quando esquematizava este breve texto, dois pequeníssimos eventos marcaram o meu quotidiano. Ambos são imagem de como nos servimos da religião para o mais pequeno do quotidiano. Apenas com esta dimensão de eventos compreendemos como a Religião nos molda as decisões e as palavras.
Em primeiro lugar, ao seguir o drama da inundação em Albufeira, vejo uma notícia onde Calvão da Silva, Ministro da Administração Interna, num sentido muito religioso, diz que “Deus nem sempre é amigo”. Imediatamente esta frase corre as redes sociais com inúmeros meus amigos, protestantes, a tentar dizer ao Sr. Ministro que a natureza de Deus não é essa.
Ora, não me interessa a discussão sobre a natureza da relação entre Deus e o Homem, o que me interessa é dar um pequeno exemplo de como numa situação de calamidade se recorre à cultura religiosa para dar uma imagem da grelha com que se leu o mundo. É por isto que uma crença, uma fé, mais que uma religião, é uma mundividência.
Num segundo momento, no Metro, escuto uma conversa tida mesmo a meu lado, ombro com ombro. Uma jovem, com uns mais de 100kg e com a correspondente volumetria que quase me esmagava, dava largas a uma infelicidade que vivia de forma crescente. Não se sente bem num mundo que valoriza o corpo, que a acusa de ser “gorda”, que lhe recusa um lugar a uma felicidade que tem na dificuldade em ter namorado, o primeiro passo para que a vida não tenha sentido.
Nada de novo nesta conversa ou não fosse mais que conhecida a nossa posição social de total ostracização, quando não mesmo acusação, de todos os que fogem a padrões estéticos que bajulamos como se fosse a ordem única no mundo. Mas esta conversa ganha outra dimensão ao entrar no diálogo, quase monólogo até ali, a sua companheira de viagem. Diz-lhe ela, retomando talvez algum tema que já viesse de trás: “Vai para a igreja muçulmana, filha, vai!”.
Se eu quisesse ser rigoroso numa imediata análise a este conselho, começaria logo por dizer que nem uma nem outra sabem o que é o Islão, ou não diriam “igreja muçulmana”. Contudo, no seu “não saber” prevalece a pré-ideia, o tal “pré-conceito”, a representação, do que é o corpo em cada um dos universos religiosos: no maioritariamente cristão, o corpo tem de ser trabalhado, usado, visto e avaliado como se fosse o fundamental; no muçulmano, ela seria liberta dessa ditadura do peso, do ser obesa, do ser criticada e de ver parte da vida fugir por ser “gorda”.
Mais uma vez, são mundividências aquilo com que nos confrontamos quando vamos para o quotidiano e vemos as opções que vocabularmente se tomam perante as coisas simples da vida. Mas estas coisas simples, seja o “lembrar-se de Sta. Bárbara quando troveja”, qual ministro que chama uma concepção de Deus para justificar a fúria das águas, ou pensar numa mudança de religião quando o quotidianos e torna insuportável.
Enfim, será por aqui, entre o insignificante do quotidiano de cada um de nós e o excepcional dos momentos que fazem História, que nos moveremos nesta agora iniciada colaboração com a VISÃO.