Uma destas crianças tem na mão um objeto que foi proibido na América para as proteger. Adivinhe qual é… Já passaram dois anos desde o lançamento desta campanha da organização Moms Demand Action (algo como Mães Exigem Ação) mas nunca a esqueci. Representa de forma clara o contra-senso que reina nos EUA. Os ovos Kinder foram proibidos em nome da segurança infantil, porque os brinquedos ali contidos para serem montados têm peças muito pequenas, mas deixar uma criança disparar uma arma automática de guerra é pacífico, desde que exista autorização dos pais.
Em 31% dos lares americanos há pelo menos uma criança que sabe usar uma arma, segundo dados de 2012. Em quase todos os Estados não existe idade legal para aprender a disparar, desde que com supervisão de um adulto. Já para ser dono de uma pistola ou carabina, as idades mínimas variam entre os 7 e os 16 anos. Isto no país onde é preciso ter 21 anos para beber uma cerveja…
O mercado das armas desenhadas especialmente para crianças cresceu a três dígitos na última década. Um dos modelos mais populares é uma caçadeira cor-de-rosa para meninas dos 8 aos 12 anos.
O mercado dos adultos também não pára de crescer. Os últimos dados oficiais indicam que existem mais de 300 milhões de exemplares nas mãos de civis, catapultando os EUA para o topo da lista de países do mundo com mais armamento per capita: 88 em cada 100 americanos tem uma arma.
Estarão todos afetados por um “síndroma John Wayne” e só se sentem poderosos de mão no coldre? Viram filmes de ação a mais em criancinhas? Querem proteger-se de ladrões e psicopatas? Temem ataques terroristas ou uma invasão de marcianos?
A verdade é que o maior inimigo dos americanos são eles mesmos. É o pai, o avô, o tio e o vizinho do lado, armados até aos dentes. Estas pistolas, caçadeiras e metralhadoras tiram a vida a uma pessoa a cada 16 minutos na América. São 90 pessoas por dia, oito das quais crianças.
Menciono todos estes números a propósito de mais um tiroteio, desta vez na Califórnia, em que um casal deixou para trás o seu filho de seis meses para entrar numa instituição de apoio a deficientes, matando 14 pessoas. Ainda não são claras as motivações do casal (insanidade ou terrorismo?) mas sabemos já que duas das semi-automáticas que levavam consigo estavam legais, como está a maioria das armas de guerra vendidas nos EUA. Apesar da retórica dos partidos conservadores, defendendo que existe controlo suficiente (os Republicanos são os maiores defensores do direito a ter armas, consagrado na Constituição, e têm a indústria do armamento entre os principais financiadores), os factos desmentem-nos. Segundo um estudo de Harvard, mais de 40% das armas são vendidas sem qualquer verificação do passado ou estado mental do comprador.
Na quinta-feira, 3, um dia depois do tiroteio em São Bernardino, os Republicanos conseguiram mesmo chumbar uma lei que defendia a proibição de venda a quem constasse na lista “No Fly” do FBI. Ou seja, os suspeitos de ligações a organizações terroristas não podem voar na América – mas podem continuar a comprar metralhadoras.
Só este ano já foram registados 294 “tiroteios em massa” nos EUA, assim designados sempre que há mais de quatro feridos envolvidos num incidente. O Presidente Obama voltou a falar na necessidade de alterar a legislação, apertando o controlo, e de acabar com a “rotina” da mortandade na América. Mas não tem o apoio suficiente no Congresso para fazer frente ao lobby do armamento. Contudo, o debate segue quente na sociedade americana, com cada vez mais vozes a exigirem que, pelo menos, seja restringido o acesso a armas de guerra à população civil.
A Segunda Emenda da Constituição é clara: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo a possuir e usar armas não poderá ser infringido.” Mas estas linhas, escritas em 1791, não podem dar carta branca a tudo. A obrigatoriedade de usar de cinto de segurança ou a imposição de limites de idade ao consumo de tabaco, por exemplo, não destruiu duas das indústrias mais pujantes da América. O que pode justificar a necessidade de ter uma metralhadora em casa, capaz de disparar 600 ou 800 tiros por minuto? “Nada”, defendeu este sábado a direção do New York Times que, pela primeira vez desde 1920, publicou um editorial na primeira página.
Nada que incomode sobremaneira os fabricantes de armas norte-americanos, que lucram mais de oito mil milhões de dólares por ano só com a venda de “armas leves” (não nos podemos iludir com esta classificação, uma pistola Glock também dispara 18 tiros em 5 segundos). Além disso, está comprovado que sempre que um destes tiroteios salta para as aberturas dos telejornais, o negócio também melhora. Esta semana voltou a haver outra corrida às armas, sobretudo às mais mortais – antes que alguém ouse proibi-las. Mas não há motivos para pressas. A mudança poderá estar a caminho mas, reinterpretando uma expressão popular americana, não será tão fácil como roubar um Kinder a uma criança.