Eram três da manhã de um verão de madrugadas mornas. Em São Roque do Pico, nos Açores, a festa de agosto era ainda criança. A sangria, o pão de milho e a morcela da ilha recheavam as mesas postas junto ao cais desta marítima vila picarota. E quão pacientes são as águas calmas que banham a baía em festa de verão, feridas na quietude habitual pela estridência dos trinares das guitarras elétricas, pelos batuques esguedelhados das baterias do pop e rock e por gritos musicais suados e agudos, quais lanças a penetrarem o líquido manto e a despertarem o peixe, que em agosto ali não dorme. Vai compensando a quietude tranquilizadora da Lua, que à noite é companheira do isolamento ilhéu, amarelada, graciosa a emprestar luz ao cais, guardando-se para os viandantes, que a essas horas já vestem gangas e samarras, protegem as cabeças com gorros e calçam botas de campo para, ao abrigo da frescura da noite, se aventurarem a trepar a montanha. Espera-os a longa caminhada, sempre a subir a selvagem reserva natural da montanha do Pico, que nasce da ilha, ascendendo do patamar dos 1200 metros aos celestiais 2351 metros de altitude, numa área protegida de 1500 hectares. Espera-os no topo uma pequena cratera, fumarolas vulcânicas e um piquinho, o pico pequeno, que cavalga a montanha. Depois, será certamente o cansaço dos corpos, mais altos do que as aves, a observar de um cockpit edificado por restos lávicos a debilidade perturbadora das ilhas em baixo.
Só em 2017, a montanha foi escalada por 15 mil pessoas. Where are you coming from? When did you arrive the island? Are you enjoying? Pergunta-se num inglês com muitos sotaques, sorri-se, trava-se amizades, que às vezes perduram uma vida. O momento é sublime e de comemoração depois do esforço da subida e talvez por isso ousa-se cimentar amizades, que, genuínas, ultrapassam as barreiras do tempo, da língua.
A reunião para iniciar a aventura é sempre na Casa da Montanha. É mostrado um vídeo explicativo e é cedida a Carta de Princípios de Escalada da Montanha do Pico e os aventureiros solitários ou o grupo de caminhantes parte em fila indiana, geralmente com um guia na dianteira, subindo o trilho com quarenta e sete estacas, que sucessivamente nos vão aparecendo em frente e nos indicam o caminho. São três horas e meia de ascensão, na noite escura, rumo ao cume, na companhia do frio, que se intensifica.
Pela madrugada, o topo deixa-se conquistar e, pouco depois, o Sol dá-nos as boas-vindas. É um sol que parece diferente de todos os outros, talvez por estarmos tão alto e termos a sensação de que estamos mais próximos dele. Seja o que for, o Sol celebra o momento connosco, vestindo-se com um intenso amarelo dourado, que derrama na montanha filigranas de luz quente e, deliciosamente, os corpos regelados vão aquecendo.
A 2351 metros, na cratera arredondada com um perímetro de 700 metros e uma profundidade de trinta metros, desafiam-nos ainda 70 metros de escalada, caso queiramos subir o piquinho, cuja ascensão às vezes consegue ser mais penosa do que o caminho que ficou para trás. Os músculos já arrefeceram. Não vás. Já subiste o suficiente. Deixa-te estar, senta-te e descansa… E há muitos caminheiros que cedem ao cansaço e não sobem esses últimos setenta metros. É pena, pois não desfrutam da vista total, estupenda, de 360 graus que o cume dos cumes oferece, que é vertigem, abismo, azul… azul de céu e mar e ilhas por ali semeadas, verdes esmeraldas, banhando-se na safira líquida que é o mar visto dali.
Conta-se que um turista, que não disfarçava o mau feitio, durante toda uma escalada, desdisse o guia, um picaroto experimentado na montanha, fazendo por desacreditá-lo junto dos demais companheiros de subida. O turista dizia ser impossível o vulcão estar ativo do sopé ao cimo uma vez que o topo estava a 2351 metros de altitude. Quando chegaram ao topo do piquinho, o guia chamou o descrente turista para junto de si e indicou-lhe um buraco pequeno, pouco mais largo do que um dedo, e disse-lhe que, curiosamente, àquela altitude, o buraco estava cheio de formigas, que verificasse por si próprio a veracidade daquilo que ele dizia, pondo o dedo lá dentro. O homem ajoelhou-se, introduziu o dedo no pequeno buraco e deu de imediato um grito, deixando-se cair. Não resistira à dor. Acabara de apanhar uma forte peladura na ponta do dedo. O competente guia provara assim que o calor do vulcão do Pico sobe até ao topo da montanha.
A ascensão do vulcão-montanha, que dorme há trezentos anos, é perigosa e pode reclamar vidas. Não havendo respeito pelas regras, o que é suposto ser um simples passeio poderá converter-se num enorme pesadelo. Entre diversos casos de mortes e desaparecimentos, recordo alguns. Uma turista italiana de 29 anos, grávida, que após ter fraturado uma perna, só conseguiu deixar a montanha graças à pronta intervenção da Força Aérea Portuguesa, que a resgatou e a transportou ao hospital do Faial. Menos sorte teve um caminhante de 70 anos que, do esforço da subida e da descida, entrou em paragem cardiorrespiratória ao regressar à Casa da Montanha, sendo ali declarado o óbito. Há ainda o caso de uma turista norte-americana de 42 anos que também encontrou a morte ao subir a montanha sozinha. A caminhante não respeitou as advertências dos bombeiros para que fosse melhor agasalhada. Atreveu-se a avançar apenas vestida de calções e t-shirt e o frio da montanha não perdoou. O corpo foi encontrado com uma perna partida à distância de quatrocentos metros de uma furna que existe para descanso dos caminheiros.
Embora haja perigos, vale a pena subir o Pico, mas de preferência em grupo e com um guia. Afinal, trata-se do terceiro maior vulcão do Atlântico e do ponto mais alto de Portugal.
Ouso terminar com este poema que Manuel Alegre intitulou de “Pico”, versos dedicados a esta montanha imensa do nosso contentamento:
“Há na montanha um deus desconhecido
Um deus que não tem voz mas não se cala
Seu silêncio é de fogo mal contido
Seus sinais são mistérios e se fala
Há um tremor de poema pressentido.
Rumor e ritmo que ninguém dedilha
Eu sei que a terra treme e não se sente
Há um coração que bate e fibrilha
Como um verso a pulsar que de repente
Descobre no Pico e é o deus da ilha.”
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