Convivo mal com a quebra da natalidade. Não por ter má consciência – tenho quatro filhos -, mas por ser casado com uma demógrafa que passa a vida a pronunciar-se publicamente sobre o assunto. Assim, pressiono-me muito a ajudá-la, com as minhas parcas capacidades de sociólogo ou antropólogo destreinado.
Começo por apresentar as ideias mais sólidas sobre as causas do fenómeno (não, volto a dizer, não são os problemas económicos; se fossem, não seriam os países mais pobres a ter mais filhos, nem, dentro de cada país, os mais pobres a ter mais filhos também – é preciso progredir um pouco na discussão):
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o controlo social diminuiu fortemente, com o êxodo para as cidades, e, hoje, as pessoas fazem mais o que querem e menos o que os outros querem que elas façam;
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as mulheres (que é quem decide ter os filhos, quando e em que número – não tinham percebido isso ainda?) estão fartas de lavar pratos e de aguentar maridos que lhes batem – ou, mesmo não chegando a esse ponto, que muitas vezes agem como pequenos déspotas de trazer por casa, depois de serem humilhados no emprego pelos melhores do que eles – e emanciparam-se, procurando uma carreira profissional que lhes dê independência económica;
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em Portugal, contrariamente a outros países, não há emprego a tempo parcial com a frequência devida, sobretudo para as mulheres;
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os homens ainda tentam ser machos latinos e não fazem nada em casa;
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a vida aumentou de dimensão e as pessoas têm muito mais solicitações: cultura, viagens, divertimento.
Podia continuar, mas penso que o essencial está dito. Posso resumir esse essencial, dizendo que estas são apenas parcelas de uma teoria global: a da liberdade. Quer de homens, quer de mulheres – mas sobretudo destas. No fundo, a principal teoria de que dispomos diz que a causa do fenómeno é a liberdade.
Pois bem, inventei uma nova teoria. Estou num lobby de um hotel ao lado da maravilhosa “Grande Place” de Bruxelas. Estou a tentar trabalhar. E com auscultadores, por isso não ouço o barulho em redor, o que, neste caso, pode ter sido providencial. Presencio uma cena inspiradora da teoria. Vou descrever.
Um casal de turistas, com três filhos pequenos, está à minha frente. Não ouço o que dizem, mas reparei – não estava muito focado no meu trabalho, já percebi – nos seus olhares e gestos corporais. Estão os dois mal dormidos, com cara de quererem matar-se um ao outro, cada um a tentar mostrar que a obrigação de aturar as criancinhas berrantes é do outro. Ele, macho latino em versão deteriorada, lá conseguiu ficar a ver o ténis (Wimbledon), depois de ligar o filho a uma televisão, através de uma playstation. Ela saiu com as filhas, uma pequena de cadeirinha e outra mais velha já agarrada ao telemóvel. Ele hesita entre dormir e ver o desporto. Mas o que mais me impressionou foi a cara de reprovação mútua do casal, do estilo: a culpa é tua. Nenhum tem já paciência para aturar os filhos.
E eu pensei: podiam ir os dois passear de mão dada para a “Grande Place”, hoje toda coberta de flores, comprar um chocolate superlativo, ou beber uma cerveja não menos única no mundo, e passear com a cumplicidade absurda de um casal de amantes. E conversar sobre a finitude da vida, e do que ela representa de vitória sobre a morte e o esquecimento, e rirem, e agarrarem-se a caminho do pôr-do-sol, nestas alturas já depois das 10 da noite. Em vez disso, atiçam-se olhos de facas, lancinantes de fim de relação, que só não o é porque há filhos, e tradição, e alguns restos de pressão familiar a condizer.
Dantes, as relações matrimoniais eram contratos, nos quais existia uma cláusula de procriação mais ou menos abundante. E segurança na coisa, que o divórcio era uma blasfémia. O homem tinha os seus esquemas, as mulheres cuidavam dos filhos, tudo perante um futuro radioso de segurança. Hoje, nas sociedades civilizadas, já nada disso existe. Não há contratos, há amor. E quando o amor acaba, rompem-se as amarras. Mas, para o amor não acabar, é preciso manter uma chama viva. Que, muitas vezes, os filhos apagam. É muito difícil regar a planta do amor, para que ela dê flor. Sobretudo na sociedade complexa e exigente em que vivemos. Por isso as pessoas pensam duas vezes antes de ter filhos. Primeiro, querem amar, ser amadas, ser felizes. Os filhos têm de entrar nessa equação. Se sim, muito bem. Se não, paciência. Cambada de egoístas? Não: cambada de altruístas: lutam para atenuar o flagelo da explosão demográfica mundial que, associada à desgraça ambiental consequente, nos vai destruir em poucos anos. A nós, e aos pró-natalistas também.
Tenho uma nova teoria: a baixa natalidade não se deve apenas à liberdade. Deve-se também ao amor, à sua valorização absoluta. E ao divórcio, que é o garante de o amor ser a base de um casamento.