Costumo distinguir aquilo a que chamo valores absolutos e valores relativos. Os valores absolutos são aqueles que são sempre positivos; não dependem do modo como são aplicados. Um exemplo que penso ser óbvio é a bondade. Em contrapartida, os valores relativos, como a inteligência, dependem do seu uso; nem sempre são valores. Num ser malvado, a inteligência é um dano e não um valor.
Nestes devaneios, também costumo defender que o que opõe a arte à ciência é esta tipologia dos valores: a ciência é um valor relativo (qualquer dia o planeta estoira por causa da sua má concretização), enquanto a arte é um valor absoluto.
Vem esta introdução a propósito da visita do escritor David Brin a Portugal e da sua recente entrevista à Visão. Para além de ser conhecido como autor de ficção científica, escreveu um livro de cariz ensaístico, sobre a “sociedade transparente”, no qual teoriza acerca do modo como a tecnologia aumenta exponencialmente a informação disponível sobre cada um de nós. Devo dizer que não li o livro, embora conheça as ideias do autor. De uma maneira geral, não estou de acordo com elas, mas refiro o seu nome pelo facto de a sua reflexão ter sido fonte de inspiração para aquela que vou desenvolver em seguida.
Vamos à minha questão central: na sequência da minha classificação da ciência como valor relativo, não é difícil perceber que atribuo a mesma classificação à informação. Com efeito, a posse de determinada informação pode ser algo de bom ou de mau. Se, numa guerra, um inimigo me quiser matar, o ele saber onde estou pode ser bom para ele (será?) e mau para mim. Ter informação sobre o modo de construir uma bomba, pode ser mau para muita gente. Tudo isto para dizer que a aparentemente inócua “informação” é, claramente, um valor relativo. Seguindo a ideia de David Brin, posso imaginar que, num futuro próximo, uns chips montados nos óculos ou nas orelhas de cada um podem dizer-nos imediatamente tudo o que há para saber sobre outra pessoa que acabámos de conhecer: nome, idade, local de nascimento, religião, sites que procura, música que ouve, ideias que defende, etc.. Cenário apocalíptico? Não tanto, mais depressa falaria do retorno ao meio rural e ao interconhecimento – todos sabem a vida de todos – que permitiu o horror do controle social, razão que provocou o êxodo libertador para as cidades. Mas, na sequência desta futurologia toda, o mais importante foi eu ter concluído que a informação pode ser dividida em duas dimensões: a da coscuvilhice aldeã e a que permite a compreensão do mundo, ou seja, a que está na base do conhecimento.
Perguntei-me então se o “conhecimento” também seria um valor relativo. Se o definir como uma acumulação de informação, terei de reconhecer que também o é. Se, em contrapartida, identificar o conhecimento com uma estruturação da informação (seleccionando alguma e abandonando outra) que o ser humano opera com o objectivo de compreender o mundo que o rodeia e de o ajudar a contribuir para a dignificação do Homem, já poderei, nesse caso, falar de valor absoluto. De certa forma, esta distinção entre dois conhecimentos assemelha-se à diferença que uma certa Antropologia operou entre “erudição” (a simples acumulação de saber) e “cultura” (a construção de um saber operacional, que ajude a comunidade a sobreviver e a desenvolver-se).
Como conclusão, diria que a informação é um valor relativo, e a sua acumulação também (à qual posso chamar “erudição”). Em contrapartida, o conhecimento, tal como o defini, seria um valor absoluto.
Para voltar a Brin, o problema que a tecnologia nos coloca para o futuro é o facto de sobrevalorizar o urgente, o fácil, o imediato – da informação – e subvalorizar o importante e a trabalhosa aprendizagem sistémica – do conhecimento. Os jovens que imaginaram os gadgets tecnológicos de hoje (facebook, por exemplo) não viveram em ditadura. Nem nas aldeias dos países do Sul. A liberdade não é a sua questão. E, até viverem o holocausto do “big brother” orwelliano (acho que vamos todos desaparecer antes disso, mas devido à destruição do ambiente ou à guerra nuclear), vão abusar da deliciosa inconsequência dos facebooks, twitters, instagrams, whatsApps, brunsbruns, tirolis, pumpums, lólós e similares.
Solução? Alguém, a nível central (quero dizer planetário), que represente toda a Humanidade, tem de controlar os Googles deste mundo. Tal como o armamento nuclear e a destruição ambiental. Porque, aqui, não se aplica a máxima do folião: quanto maior é a ressaca, melhor foi a noite anterior.