Um recente artigo da Visão, que relata o súbito alastrar de actos violentos por este nosso país, começa assim: “o mito dos brandos costumes passou à história”. E eu lembrei-me de dois comentários que ouvi a dois estrangeiros em duas reuniões internacionais em que participei, já lá vão muitos anos.
No primeiro caso, conheci uma senhora inglesa que tinha cá uma casa, na qual passava parte das férias. A certa altura, diz-me que achava os portugueses uma gente calma, gentil e atenciosa, excepto numa situação: quando se sentavam ao volante de um carro. Transformavam-se, então, em verdadeiras feras.
No segundo caso, numa grande mesa de restaurante onde se juntaram oriundos de vários países, um nórdico perguntava ao espanhol sobre os hábitos violentos dos latinos (morte dos touros, guerra civil de Espanha e similares). De repente, e porque estavam um pouco longe de mim, pergunta como eram os portugueses. O espanhol olhou-me e respondeu: “esses, são mais ingleses do que latinos”.
Como se cruzam estas duas histórias no tema que pretendo abordar?
Começo por dar total razão à inglesa. E devo dizer que não me estou a armar em moralista ou espectador de bancada: eu, que tenho alguma fleuma britânica – por ter andado num colégio inglês entre os 4 e os 10 anos, razão pela qual achei, porventura mal, a observação do espanhol muito inteligente -, começo facilmente a apitar e a insultar as pessoas quando conduzo no caos do trânsito urbano. A questão é perceber a razão de tal transfiguração.
Uma primeira explicação, talvez simplista, diria que somos mesmo latinos, fervemos em pouca água, mas andamos sempre mascarados de ingleses fleumáticos. O espanhol teria, assim, razão. De vez em quando, salta-nos a tampa, como os ingleses no futebol.
No entanto, esta explicação não me convence. Porque os ingleses, com a sua frieza, ou talvez por causa dela, foram capazes das maiores atrocidades no passado, nos países que colonizaram. E nós, exceptuando esta nova tendência comportamental de que o artigo da Visão fala, não temos sido violentos. Mesmo no trânsito, a regra é mais o “agarra-me senão eu mato-o” do que uma verdadeira vontade de fazer mal. É claro que tudo muda, mesmo os comportamentos de um povo; mas, de facto, não tem sido assim. Surgiria, deste modo, uma segunda explicação, que não estaria ligada a uma educação de tipo inglês, ou seja, de controlo absoluto da exteriorização dos sentimentos, mas antes ao medo. A causa não seria então a aliança mais antiga do mundo civilizado, mas os 50 anos de ditadura, que nos obrigou a comer e calar. E a ter medo. Da polícia, dos eventuais disfarçados que andam na rua, dos abusos dos poderosos, de uma Justiça conivente, etc.. Seguindo este raciocínio, a situação de condução poderia ser potenciadora de uma sensação de protecção, de invulnerabilidade, que desvaneceria o medo, pelo menos aparentemente. E, ao mesmo tempo, de uma intensa convicção de poder, inovadora para quem andou a vida toda a amochar. Segundo esta teoria, o medo terá desaparecido, mesmo sem ser ao volante, para os mais jovens que não conheceram esse tempo. E a brandura terminou.
Também não sei se esta segunda explicação presta para alguma coisa. Caberá a cada um a tarefa de pensar sobre o tema. Eu, tenho vontade de pensar que o carro é que é o culpado, e termino com excertos de um poema antigo, do Pessoa.
“Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sòzinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
…………………..
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
…………………..
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…”