Que o rapaz se revelou um exímio dançarino de cordas bambas não é novidade para ninguém. Apunhalou um líder, que não tendo o carisma de um Júlio César, era o secretário-geral do seu partido, e que não tendo conquistado a Gália, saíra vencedor de umas eleições europeias. Ganhara-as, por poucochinho, é verdade. Mas ganhara-as. A seguir, perdeu, por demérito próprio, umas legislativas imperdíveis.
Com uma cambalhota para aqui outra para acolá e uma grande, ainda que involuntária, ajuda de Cavaco Silva e da direita esganiçada, realizou o impensável: manteve-se na liderança do partido, deixando Francisco Assis praticamente sozinho, no canto direito do PS, a fazer sermões a uns poucochinos pássaros socialistas. Mas o equilibrismo de António Costa ainda foi mais longe: introduziu a temida “extrema esquerda” anti-sistema nos corredores do poder e, enquanto o demo esfrega um olho, desfez o esquema, há demasiado tempo incrustado no sistema político e no aparelho de Estado, a que uns chamam “arco da governação” e outros “bloco central de interesses”.
Costa já havia provado, muito tempo antes, ser um excelente negociador, quando no final dos anos 80, forjou com Miguel Portas a coligação Por Lisboa, que, além do PS e PCP, chegou a incluir os trostskistas do PSR e os estalinistas pró-Albânia da UDP, varrendo a direita da Câmara da capital. Se, em jovenzinho o conseguira, porque não com mais 26 anos de política em cima do lombo?
É perito em tirar castanhas das brasas sem se queimar. Por defeito, feitio ou predisposição genética, vá-se lá saber, é um negociador nato, especialista em impossíveis. Voltou a revelar essa faceta na noite desta quinta-feira, 21, quando o seu ministro das Finanças, Mário Centeno, apresentou as “linhas essenciais” do “esboço” de Orçamento do Estado para 2016.
Praticamente sem aparecer (ainda estava a digerir o jet lag da viagem a Cabo Verde) deixou na opinião pública a ideia de que não faz genuflexões em Bruxelas nem vai a Berlim dizer “jawohl, gnädige Frau!” (qualquer coisa como “evidentemente, minha senhora!”)
Costa não é homem para se colocar de joelhos ou para fazer vénias subservientes. Tem, dizem, demasiado mau feitio para tais gestos. O certo é que, ainda no destino da sua primeira viagem oficial, falou em “negociações difíceis” com o Executivo bruxelês, enquanto, por cá, iam saindo notícias dando conta das enormes “pressões” que a Comissão Europeia estaria a exercer sobre Portugal, por causa do défice.
Centeno surpreendeu ao apresentar um número para défice orçamental de 2,6 por cento. Nem tão poucochinho como os 2,5% que Bruxelas pretendia nem tanto como os 2,8% que ele inscrevera como meta no programa do Governo. Surpreendeu porque, logo pela manhã, vários órgãos ditos de informação garantiam que os 2,8% seria o número mágico a cunhar no “esboço” a enviar, no dia seguinte, para Bruxelas. Se não se papaguearam uns aos outros, foram no mínimo “comidos” pela fonte, algum spin doctor interessado em criar expetativas, que lhes distribuiu à laia de “cacha” o “esboço” do “esboço” do “esboço”, pedindo o anonimato, como é óbvio.
Como hábil negociador, Costa sabe que não pode dar tudo de mão beijada à outra parte. E sabe que é preciso esticar a corda até ao limite do ponto de rutura. Não dá a Bruxelas o que os tecnocratas querem, mas sabe quando tem de aliviar a tensão ou aumentar a pressão.
Aliviou-a até um ponto em que a Comissão não se deverá aborrecer por tão poucochinho, neste caso uma décimas percentuais. Quem esperava os 2,8% também não deverá reclamar muito por 0,2 pontos percentuais.
Sabendo que tem de ceder nalguma coisa para contentar a burocracia de Bruxelas, atirou-lhes com menos 2,7 pontos percentuais do PIB na dívida pública. Isso sim, um número que se veja, arrdondando são fartos 3 pontos percentuais. Mas que diferença é que isso faz, num montante a modos que impagável?
Do que foi anunciado, o caso mais bicudo tem a ver com a parte do défice chamada de estrutural – uma espécie de profissão de fé do catecismo da consolidação orçamental. É essa que mede o esforço. É como que a essência purificada do défice, depurado de impactos conjunturais (tais como uma recessão) e de imprevistos, por exemplo, o dinheirito gasto para socorrer aflições do tipo Banif.
Aqui o Pacto de Estabilidade e Crescimento é claro, exigindo uma redução anual de pelo menos 0,5 pontos. Mas Costa diz à contraparte que só lhe dá 0,2, baixando o défice estrutural para 1,1% do PIB. É poucochinho, mas não o podem acusar de intransigência. Dá-se o que se tem e ele não tem muito mais. Talvez uma decimazita.
Sendo a bandeira deste Orçamento a aposta no estímulo à economia, Costa e Centeno querem mostrar a Bruxelas que o aperto orçamental, terá um impacto sobre o crescimento e que exigências excessivas da Comissão Europeia, podem atrasar a saída da crise. Por isso, ao reduzir a meta de défice de 2,8 para 2,6% do PIB, o Governo reviu também a sua previsão de crescimento económico em baixa, de 2,4 para 2,1 por cento.
A Comissão sabe disso. Sabe (permitam que o escriba abuse tanto deste verbo) do esforço quotidiano dos portugueses e conhece bem os efeitos de uma cura que quase matou o doente. E aqui entra-se no jogo amoroso da cantiga da Marisa Monte Eu sei que você sabe/ Que eu sei que você sabe. Só que em sentido duplo: Bruxelas sabe que Costa sabe que ele não tem muita margem para esticar a corda. E Costa sabe que Bruxelas sabe que ele sabe que ela sabe que tem de lhe deixar alguma margem de manobra para ele não perder a face perante os três partidos que o apoiam e o seu eleitorado.
Por seu lado, o primeiro-ministro sabe que a Comissão sabe que não pode apertar muito mais o garrote da austeridade nem o pode aliviar muito, sob pena de estar a admitir publicamente que a receita da austeridade falhou, perdendo ela também a face. E é na face que está o cerne da questão.
Ambos sabem, todos sabemos que a margem para as coisas correrem mal é diminuta. A começar por ninguém querer que corra mal. Bruxelas, não o quer. Costa não o quer. O Bloco de Esquerda e o PCP também não. E os portugueses e portuguesas, não precisam cá de mais confusões para poderem tratar das suas vidinhas.
Costa pode não estar a encenar um finca-pé para consumo interno, mas faz com este que pareça maior. Ao mesmo tempo que a Comissão não estando a simular dureza (para mercado ver), esta passa ampliada para a opinião pública. E, como sempre, o indígena tuga finge acreditar em tudo o que vê na televisão e pesca nas redes sociais, porque jornais em papel já quase ninguém lê.
Bruxelas não quererá arriscar (nem é do seu interesse) uma jogada suscetível de criar outro foco de instabilidade na zona euro, empurrando um Estado-membro (mais um) para o abismo. O efeito seria imprevisível, em vésperas de um referendo no Reino Unido sobre a permanência na União, com a direita anti-europeia a ganhar terreno em França e uma situação de impasse no reino de Espanha. Nem o Executivo europeu tem legitimidade política – é de política que aqui se trata – para ser mais duro para com Portugal do que foi, em 2014, em relação a França, distinta “inventora” da regra de ouro dos 3% de défice, quando esta assumiu não respeitar, no ano seguinte, esse limite. Aliás, nos últimos 20 anos, só o respeitou em seis ocasiões, a última das quais, em 2007.
A Comissão não vai dar a Costa tudo o que ele quer. Mas também não vai deixá-lo de mãos a abanar.