Num comentário a um texto meu sobre as raízes da ideologia jihadista (aqui), um leitor que se identificou como Walter perguntava: “Qual a origem do ódio dos muçulmanos para com o Ocidente?”
É uma pergunta pertinente, apesar de discordar em absoluto com a utilização do vocábulo “muçulmano” para referir a seita jihadista salafista, quando o Islão tem uma enorme diversidade de correntes, escolas de pensamento, de jurisprudência e de interpretação dos seus textos sagrados. O terrorismo jihadista não representa “os muçulmanos”, da mesma maneira que o Ku Klux Klan não representa os cristãos ou o Exército Republicano Irlandês os católicos.
Olhar para a história do Médio Oriente desde o final da Primeira Guerra Mundial explica muito sobre o que estamos a viver por estes dias. Vários pensadores e analistas tentaram dar uma resposta. E essa está, em grande medida, num mapa desenhado a régua e esquadro por potências coloniais, nas jogadas geopolíticas do Ocidente naquela região. Também vamos encontrá-la no envolvimento dos complexos industriais-militares, sobretudo o norte-americano, naquela embrulhada. E ainda no conluio (ao arrepio do que são os valores humanistas e democráticos) dos nossos governos com tiranos locais, numa desavergonhada adoração ao deus do petro-dólar, cujo culto pouco contribuiu para superar os atrasos no desenvolvimento social, económico e cultural, mantendo a maioria das populações na pobreza.
Entre outros, Gore Vidal explicou-o ainda na ressaca do 11 de Setembro. Fê-lo até à exaustão, numa série de ensaios publicados sob o título Perpetual War for Perpetual Peace – How we got to be so hated – causes of conflict in the last empire (Guerra Perpétua para a paz perpétua – como nos tornámos tão odiados – causas de conflito no último Império), em que critica duramente o expansionismo americano, a principal causa de conflitos armados, segundo ele, no pós-Segunda Guerra Mundial. Vidal chega a apresentar, a seco, uma lista com mais de duzentas operações em que os EUA estiveram diretamente envolvidos, isolados ou com os seus parceiros ocidentais.
Um olhar sobre a história dá apenas uma resposta parcial. O terrorismo jihadista não odeia unicamente a civilização ocidental, as suas liberdades, as suas instituições e o capitalismo. Ele odeia, ponto final. Aliás, a maioria das vítimas do auto-proclamado Estado Islâmico está precisamente naquela região. São cristãos, alauitas, yazidis, xiitas, muçulmanos sunitas que não abraçam o salafismo jihadista e curdos, entre outros grupos étnicos e religiosos. Milhões de pessoas vivendo, há décadas, sob ditaduras brutais, sob ocupação ou em guerra civil, e agora sujeitas ao terror dos jihadistas.
Esclarecedora foi para mim a releitura de um livro de folhas amarelecidas que tive de ir buscar à última prateleira de uma estante à qual só chego de escadote: Die Massenpsychologie des Faschismus (A Psicologia de Massas do Fascismo), de Wilhelm Reich.
E porque chamo para aqui o fascismo? Não o faço de ânimo leve nem motivado pela necessidade de etiquetar as coisas. Não me caiam já em cima, dizendo que o fascismo é um movimento político europeu. Continuem a ler. Não se baseia o jihadismo também numa ideologia que rejeita em absoluto uma sociedade livre, pluralista e democrática, tal como o fascismo? O jihadismo é, de facto, uma espécie de clerical-fascismo.
Se olharmos para a lista de características atribuídas por Umberto Eco ao fascismo, num ensaio publicado, em 1995, na The New York Review of Books, constatamos que praticamente todas estão presentes no Estado Islâmico: “Culto da tradição” (regresso ao modo de atuação do profeta e dos seus companheiros), “culto da ação pela ação”, “discordância é traição”, “pavor à diferença”, “apelo à classe média frustrada”, “obsessão por conspirações”, “pacifismo é cooperar com o inimigo”, “a vida é uma guerra permanente”, “desprezo pelos fracos”; “culto do chefe”; “novilíngua”, “difusão de meias verdades e mentiras e propaganda”. Aos jiahdistas pode faltar o nacionalismo, mas até para eles há uma noção de pertença a uma comunidade – a Umma a comunidade islâmica (que eles querem moldar, eliminando outras correntes de islamismo tidas como “heréticas”). A suposta pureza da sua corrente do islamismo está para eles como a raça ariana estava para os nacionais-socialistas alemães do século XX.
Apesar de a primeira edição ter visto a luz do dia em setembro de 1933, oito meses após a subida de Hitler ao poder, a obra Psicologia de Massas do Fascismo não perdeu atualidade. Não nos questionamos de como é possível “pessoas normais” aderirem ao jihadismo?
Pois Reich fez o mesmo em 1933 e nas várias revisões que fez ao texto nas décadas seguintes. O psicanalista, que chegou a ser tido como o delfim de Freud, mas com o qual rompeu, aplicou os conhecimentos extraídos dos seus trabalhos sobre estruturas de caráter à vida social e política. E com a ascensão do nazismo na Alemanha, nos anos vinte e trinta, também se questionou sobre as razões da adesão das massas a uma ideologia que as oprime. As pessoas “normais” são incapazes de serem livres devido a estruturas irracionais de caráter, concluiu.
O fascismo não é, segundo ele, uma orientação política, mas uma expressão da vontade das pessoas “normais” satisfazerem as suas necessidades biológicas primárias, o que lhes tem sido impossibilitado por uma opressão autoritária milenar. Essa estrutura patológica é conservada em cada indivíduo e transmitida aos filhos através da educação. A tentativa de a ultrapassar conduz a um nível destrutivo do caráter, a que Reich chamava de “peste emocional”. Esta manifesta-se por várias vias: na fofoca maliciosa, na violência verbal, nos comportamentos criminosos e associais, na burocracia, no desejo de domínio autoritário sobre os outros, nos maus-tratos infligidos a crianças e idosos.
Pessoas afetadas pela “peste emocional” reichiana gostam de estabelecer regras rígidas e de submeter os outros, estabelecer tabus sobre a sexualidade, não toleram a diferença e os desvios à norma, delatam o vizinho, gostam de nos dizer o que devemos fazer, ler e vestir, e têm uma atitude negativa perante a vida.
Na forma como as sociedades se estruturam, a “peste” é endémica. Mas, por vezes, propaga-se de forma epidémica, contagiando grupos de pessoas, organizações e Estados. Segundo Reich, ela existe, como nível de carácter, em todas as pessoas.
As experiências de Reich em análise de carácter levaram-no a convencer-se de que “não existe um único indivíduo que não seja portador, na sua estrutura, de elementos do pensamento e do sentimento fascistas”. E isso explica a razão por que tanta gente normalíssima acha defensável a chacina de judeus nos campos de concentração, o assassinato de bósnios muçulmanos e, mais recentemente, a degolação de reféns do Estado Islâmico