Afundo-me nas almofadas. A cada linha, o pensamento afasta-se da leitura e deriva para uma sonolência de fazer dançar as letras na página branca. Pesam-me as pálpebras. Estou quase a deixar-me ir. A cadela topa-me. Resolve atuar antes que seja tarde demais para ela. Sobe para o sofá e põe-se ao meu lado. O toque de uma pata no ombro e uma lambidela na orelha tiram-me daquela quase modorra. Vai novamente para o chão e senta-se de frente para mim. Imóvel, olha-me fixamente.
– Farrusca, vamos à rua? – pergunto.
À palavra mágica, inclina a cabeça para o lado. A seguir, agita-se e corre para a porta, a cauda doida a abanar de alegria.
Momentos depois, ao sair do prédio, dispara para o lado direito.
– Calma. Mais devagar – digo-lhe, puxando a trela.
Sei bem o que quer, mas não estou para corridas e sou daqueles que acham que são os donos que passeiam os cães e não o contrário. Ela continua a esticar a trela.
Acelero o passo e, em segundos, já está a farejar junto à porta gradeada do número 75 da nossa rua. O edifício é apenas uma fachada novecentista sem miolo. Lá dentro, vegetação e gatos, pombos e, quase de certeza, ratazanas gordas e repugnantes. Antes do incêndio que fez ruir o seu interior até ali habitou uma colónia de morcegos.
A bicharada está bem alimentada graças a uma velha que ali passa todos os dias, deixando comida e água em recipientes de plástico improvisados com os fundos de garrafões de água. A barriga cheia enfraquece-lhes o instinto da caça.
Os cheiros excitam a Farrusca. Tento que não encoste demasiado o focinho ao chão quando fareja por ali. E que não coma algo que ali possa encontrar.
Esse é sempre um momento de grande tensão na nossa relação. Ao meu “não!” chicoteado ela responde com um olhar meloso e triste de partir o coração.
Até à esquina, até ao número 63, com vários “Ás” e “Bês” pelo meio, está tudo vazio. Dobra-se a esquina e ainda é quase mais meio quarteirão – seis ou sete portas – pela Avenida da República adentro. Abandonado desde muito antes de irmos morar para ali – e já passaram onze anos.
Num raio de nem duzentos metros, há pelo menos quatro prédios devolutos a excitar o olfato da minha cadela. Uns em melhores, outros em piores condições.
Em Lisboa estamos sempre a tropeçar em edifícios devolutos. Na capital, a média é de um num raio de trezentos metros, mas há zonas com uma densidade maior: na Baixa Pombalina, no Rossio, na Mouraria e em Alfama será de um em cada cem metros.
Os dados mais recentes que uma busca no Google me devolve numa folha de Excell, com um levantamento da Câmara Municipal de Lisboa feito em 2009, dão conta de 4 689 edifícios parcial ou totalmente devolutos – ou seja, um em cada 12 dos 60 mil prédios do município está nessas condições.
Admito que o número tenha diminuído desde então. Mas, no essencial, a situação mantém-se. Alguns destes prédios do levantamento de há seis anos já ruíram. Como um no meu bairro que fechou uma avenida durante meses a fio, e onde agora está um parque de estacionamento. Outros, terão sido recuperados por força do boom de turismo que Lisboa está a viver. Hotéis e Airbnbs aparecem como cogumelos na paisagem urbana.
Mas isso também não deixa de ser um fenómeno conjuntural, ligado à especulação imobiliária. A mesma especulação que transformou, nas últimas décadas, a habitação na capital em algo incomportável para muitas famílias jovens, empurradas para a periferia.
Lisboa tem atualmente uma população residente em 300 mil habitantes inferior à do início da década de 80. Em trinta anos, a cidade perdeu um em cada três dos seus habitantes. A cidade envelheceu (isso será tema para refletir noutra crónica). Mas também muitas empresas saíram. A especulação não foi, claro, o único fator. Há também as zangas familiares em torno de partilhas e o desleixo das autoridades perante um fenómeno que, nem que fosse pela segurança e saúde pública, devia estar no topo da sua lista de prioridades.
O que tem dinamizado a cidade é o turismo, e foi graças a ele que se recuperou muito património. Portugal está na moda. E os anos de austeridade tornaram o país e a cidade bastante baratos para os padrões europeus, sendo acessíveis até às classes médias menos abastadas do norte da Europa. Mas o que fazer quando a galinha deixar de pôr ovos de ouro? Quando destinos como o Egito, a Turquia e a Tunísia saírem da instabilidade que desviou muito do tráfego de turistas para Portugal?
Se concentramos todo o esforço de recuperação da cidade nessa indústria teremos de pagar um preço elevado no futuro – social e economicamente.
Não, não sou contra os turistas. Quantas vezes a Farrusca e eu interrompemos o passeio, para indicar a direção de um hotel, de um restaurante ou de uma estação de metro? Mas vejo a cidade, esta cidade, como um organismo vivo, carenciada que está de políticas de reabilitação urbana e de atividades económicas dirigidas às pessoas que nela habitam e nela querem trabalhar, que nela se querem divertir; de políticas que permitam a essas mesmas pessoas receberem os turistas de braços abertos sem ficarem reféns deles.
O passeio chega aqui ao fim.
– Anda Farrusca, vamos deixar os senhores. Para casa.
A cadela senta-se e espera pacientemente que eu abra a porta do prédio.