
Susa Monteiro
A pessoa que menos atenção me deu na vida morreu com cerca de sessenta anos, quando eu tinha doze. Idosíssimo, portanto. Era pai da minha mãe, era surdo e, ao contrário de toda a família, que me adorava, não me ligava nenhuma. Nunca me falou, não me lembro de um sorriso seu, quanto mais de uma festa ou um beijo, e não me fazia diferença que não me ligasse nenhuma porque eu também não lhe ligava nenhuma. Filho mais velho de dois filhos mais velhos, bonito, loiro, de olho azul, recebia atenções sem fim de todas as irmãs do meu pai, de todos os irmãos da minha mãe, das minhas avós, claro, atenções e desvelos de toda a gente, enfim, menos dele, e pagava-lhe com prazer na mesma moeda. Lembro-me que, quando eu dizia uma dessas gracinhas parvas das crianças, a minha avó, mulher desse avô, me pedir para repetir mais alto para ele ouvir, como me lembro perfeitamente de repetir mais baixo de propósito, enquanto o meu avô se inclinava para mim de mão em concha no ouvido. A minha avó insistia
– Diz com mais força filho, tem paciência
e eu despachava a frase num murmúrio, já meio de costas para ele, deixando-o, literalmente, de orelha murcha. Ao contrário dos Lobo Antunes, que tinham dinheiro e davam presentes do caraças no Natal
(viviam num casarão e pêras, com jardim e quinta)
os Almeida Lima moravam num segundo andar de risca ao meio e as duas coisas que eu inevitavelmente recebia no dia 25 de Dezembro, ao jantar, depois de um opíparo almoço nos Lobo Antunes e uma alcofa enorme cheia de bugigangas caras, era uma caixinha de cartolina com lápis de cor
(nunca esquecerei a marca Viarco)
cuja ponta levava a vida a partir-se, e uma lanterna de pilhas que não servia para nada
(os lápis Viarco também não serviam para nada porque o bico passava o tempo a partir-se, o que me impediu de me tornar um Velázquez)
a não ser para iluminar quartos iluminados e fazer fosquinhas às pessoas crescidas que terminavam sempre com a frase
– Ó filho acaba lá com as patetices
e comigo a atirar a lanterna para o chão, de pilhas a soltarem-se e a rolarem para debaixo do sofá de onde a empregada, estendida ao comprido nas tábuas, tentava puxá–las em vão com o cabo da vassoura. Penso agora que todos os móveis da casa dos meus pais tinham pilhas por baixo porque, durante a noite, vagos halos azuis, indecisos e trémulos, percorriam vagamente os compartimentos adormecidos.
O meu avô, quando não estava a trabalhar, estava a ler o jornal ou a olhar a parede em frente com um sorriso vago de Buda de loiça. Lá se animava quando morria alguém, porque a minha avó era fã de velórios e arrastava-o para capelas várias, cheias de cadeiras encostadas à parede onde cochichavam velhas, em torno de um prisma de madeira deitado, rodeado de flores, onde se distinguia, imprecisos, um par de mãos amarelas algemadas num terço. Antes de entrarem a minha avó recomendava ao meu avô que se mantivesse calado. Ele em geral não falava, mas nos velórios era atacado por um acesso de gases monumentais que tornavam a cerimónia num lugar de escândalos horríveis. Por exemplo, e para citar alguns casos menos graves, ao tentar consolar um viúvo, abatidíssimo pelo passamento da esposa que lá estava, esticada, no centro de um cone de fitas e flores, bateu-lhe com energia nas costas animando-o com voz sonora
– Não pense mais na morte da bezerra
ou, ao cumprimentar uma senhora que para ali tinha o esposo de lenço na cara, apertou-lhe com energia os dedos
– Os meus sentimentos
a senhora
– Ai
o meu avô
– É a vida
Continuando a apertar-lhe as falanges e a senhora
– Ai
o meu avô, decidido a ajudá-la, prosseguiu no seu cumprimento
– Coragem, coragem
e conseguiu dar-lhe ânimo porque a senhora acabou por soltar um berro de vitela mortalmente ferida
– Não é isso, é que me está a magoar
e, no que se refere a velórios, um terceiro onde ele, sentado ao lado da mesa em que se assinava o nome numa folha, tamborilava no tampo da dita, murmurando
– Mas que grande desgraça
passado um bocadinho
– Mas que grande desgraça
passado outro bocadinho
– Mas que grande desgraça
depois, começando a animar-se com o ritmo
– Mas que grande desgraça
com mais energia
– Mas que grande desgraça
não dito, quase cantando
– Mas que grande desgraça
passando, a pouco e pouco, de canto a berros
– Mas que grande desgraça
– MAS QUE GRANDE DESGRAÇA
– MAS QUE GRANDE DESGRAÇA
até terem de o arrastar para o exterior da câmara ardente onde ele continuava aos berros
– MAS QUE GRANDE DESGRAÇA
alcançando o adro da igreja, onde finalmente se deu conta do seu assombro musical e se calou envergonhadíssimo, com a minha avó já de palmas estendidas para o estrangular na via pública. Pouco depois morreu. A minha mãe não nos introduziu ao velório, se calhar com medo que os meus irmãos e eu, por herança genética, desatássemos a gritar
– MAS QUE GRANDE DESGRAÇA
e os lápis Viarco e as lanternas de pilhas desapareceram da nossa existência. As noites foram-se despindo de halos azuis, os dias de riscos ao acaso nas paredes e nunca mais ninguém nos pediu para contarmos gracinhas requentadas com mais pulmão.
A minha avó tornou-se uma viúva feliz, cheia de amiguetas, que passavam os fins de semana em excursões a Fátima, cochichando segredos, comendo pastéis de massa tenra, suspirando, contentíssimas
– Ai filha
Rezando, já agora, o seu bocadinho no divino santuário e achando o condutor da camioneta que as passeava um rapaz com boa figura que se reparares bem, Teresa, vês que até nem é feio.