1. Nos inícios de 1995, Jorge Sampaio, prestes a anunciar a sua candidatura às presidenciais do ano seguinte, convidou, em grande segredo, o dirigente do PCP, Carlos Brito, de quem era próximo, para jantar em sua casa. “Estou a pensar candidatar-me. O que é que acha?” O encontro, exploratório, visava perceber a posição dos comunistas, ainda com grande peso eleitoral, perante tal desenlace. “Na manhã seguinte”, conta Carlos Brito ao biógrafo de Sampaio, José Pedro Castanheira (que, por coincidência, dá uma entrevista à VISÃO, esta semana), “fui logo falar com o Álvaro Cunhal, que ficou satisfeito”. O velho líder histórico do PCP tinha passado a pasta da liderança, três anos antes, para Carlos Carvalhas, mas mantinha grande ascendente sobre os destinos do partido. E logo, com assinalável pragmatismo, declarou a Brito: “É o Presidente mais à esquerda que podemos ter em Portugal. Temos de fazer tudo para assegurar a sua eleição.”
O diálogo é datado: aconteceu em 1995, quando a maioria sociológica do País ainda se situava à esquerda e onde o PCP, embora já afetado pela erosão, mantinha bastante força. Mesmo nesse quadro, Cunhal, no seu realismo, considerava que nunca os portugueses elegeriam ninguém mais à esquerda do que o socialista Jorge Sampaio.
O tempo passou, o País mudou e, em 2026, é difícil prever que os portugueses elejam, para Belém, alguém mais à esquerda do que António José Seguro. Mas faltará à esquerda uma voz realista, prudente e conhecedora como a de Álvaro Cunhal. Em 1996, os comunistas apresentaram Jerónimo de Sousa para que este desistisse, a favor de Sampaio, à boca das urnas. Em 2026, nem vários dos próprios dirigentes do PS desistem das suas reticências contra o “demasiado moderado” António José Seguro, muito menos teremos desistências, a seu favor, de candidaturas estimáveis mas de nicho, como as de António Filipe ou Catarina Martins. Pelo contrário, estes são candidatos que recolherão votos de muitos socialistas que, misteriosamente, não podem ver Seguro, nem que este se apresente dentro de uma burca…
Ainda por cima, não se sabe se para o tramar ou para o favorecer, surgem notícias de movimentos de alegados “passistas” que ponderam apoiar Seguro. Evidentemente que, em teoria, isto só o favorece: indica que o candidato pode alargar ao centro e à direita, sem cujos votos, dado o novo panorama da sociologia política eleitoral, jamais terá hipóteses de lá chegar. Claro que esses apoios, vindos do setor do PSD mais odiado pelo PS, provocam ainda mais desconfiança sobre o antigo secretário-geral socialista. Esquecem-se os “socialistas desconfiados” de que Mário Soares, em 1986, fez uma campanha iminentemente centrista, na primeira volta, mas virou o discurso para um pendor fortemente esquerdista, na segunda, para se distinguir bem de Freitas do Amaral e, assim, obter a unanimidade do (então) precioso voto comunista, depois de ter sido agredido por militantes comunistas na Marinha Grande! Que se saiba, Passos Coelho nunca agrediu nenhum socialista… E também se esquecem de que, na reeleição, em 1991, Soares, apesar da rábula do “republicano, socialista e laico”, não enjeitou o apoio explícito do PSD de… Aníbal Cavaco Silva!
António José Seguro foi secretário-geral da JS e do PS, deputado, deputado europeu, secretário de Estado, ministro e, na liderança do PS, ganhou umas eleições (europeias), as únicas que teve oportunidade de disputar. Não se lhe conhecem telhados de vidro, nem casos e casinhos, e é tido como uma pessoa proba. É, portanto, um candidato apresentável, e de centro-esquerda. E, sob o alto patrocínio de José Luís Carneiro e de Carlos César, a quem era difícil os socialistas dizerem que não, foi apoiado, no passado fim de semana, finalmente, pelo PS. Só que, ainda assim, Carneiro teve a necessidade de ressalvar que dirigentes, militantes e simpatizantes mantêm toda a liberdade para discordar (presume-se que em público). Um apoio envergonhado que, assim, se percebe mal. Ou que pode ser tático: como as coisas estão, não convém ao sucesso de António José Seguro – e chegar à segunda volta já seria um sucesso… – uma colagem excessiva ao partido. Talvez seja isto. Porque, caso Seguro não chegue à segunda volta, a alternativa do PS – e de toda a esquerda! – pode ser entre Gouveia e Melo e André Ventura. Ou entre um deles e Marques Mendes. É isto que a esquerda democrática – e a outra… – desejam?
2. A polémica em torno da nova lei que proíbe o uso da burca, em espaço público, representa a metáfora perfeita da esquizofrenia da discussão política. O Chega, suspeito de ter uma agenda retrógrada de redução dos direitos das mulheres, posições relativamente à família e ao aborto ultraconservadoras e declarações explícitas de vários dirigentes, incluindo mulheres (Rita Matias) nessa senda, vestiu a pele de cordeiro e, para entalar a esquerda, bateu no peito pela dignidade da mulher, em nome da qual, supostamente, fez aprovar, no Parlamento, esta lei. É óbvio que, depois de quase três dias desaparecido em combate, sendo substituído, em entrevistas nas televisões (que já ressacavam…), pelos candidatos à presidência do Benfica, e evitando, assim, ser ainda mais confrontado pelo desaire eleitoral, André Ventura teve nesta lei o pretexto para fazer esquecer tal desaire. E, de caminho, para anular, nas redes sociais, o bruaá desencadeado pela inspirada intervenção do deputado social-democrata Gonçalo Capitão que, com assinalável sentido de humor, ridicularizou a bancada do Chega, no Parlamento. Mas não foi só isso que moveu o Chega: a pretexto de proteger os direitos das mulheres, onde Ventura quer chegar é à confrontação com a comunidade islâmica e com esta parte dos imigrantes. E nem sequer se percebe qual comunidade islâmica: em todos os testemunhos desta discussão, contam-se pelos dedos de uma mão as pessoas que já viram burcas no espaço público, em Portugal. E, mesmo estas, se calhar confundem a burca com outra peça de vestuário. Como alguém referiu, nas redes sociais, é uma espécie de legislação preventiva que podia ter derivado, por exemplo, para “a proibição de os cidadãos circularem montados em leões africanos”. Convenhamos, também precisamos dessa lei, em nome da segurança pública…
Depois, foi divertido assistir ao voto sim da Iniciativa Liberal, o tal partido que se insurge contra a interferência do Estado na vida das pessoas, incluindo, alegadamente, na vida privada, e que, por isso, votou contra os estados de emergência, durante a pandemia, e agora aprova, sem pestanejar, a interferência do Estado no domínio das escolhas do vestuário feminino… Que liberais estatistas e proibicionistas são estes?
Curioso foi ver, também, a incomodidade dos partidos à esquerda, de quem sempre ouvimos a denúncia do atropelo dos direitos das mulheres e a crítica explícita ao uso imposto da burca. A ala esquerda da AR contorceu-se na cadeira pelo ataque da direita à “liberdade religiosa”!
Na verdade, muitas vezes se disse das iniciativas do Bloco de Esquerda, nos seus inícios, que eram “fraturantes”. E que temas como a adoção por casais do mesmo sexo, por exemplo, não eram uma prioridade para os portugueses, a braços com outras preocupações, como a carestia do custo de vida, a saúde ou a habitação. O discurso repete-se, agora com as medidas fraturantes do Chega. Ora, a apresentação de leis e medidas ditas “fraturantes” nas margens das preocupações da população mas artificialmente empoladas, como se fossam urgentes, faz parte da cartilha de todos os partidos radicais e populistas, à esquerda ou à direita. E não é por esta via, claro, que os “chegas” desta vida ganham respeitabilidade para governar. Ainda bem.