As eleições autárquicas são aquelas que se prestam mais a diferentes narrativas de vitória – e há sucessos para todos os gostos. Em 2021, o PSD de Rui Rio foi copiosamenbte derrotado, mas o líder social-democrata teve uma ilusão de recuperação eleitoral, e o correspondente discurso de vitória, porque ganhou Lisboa – um mérito de Carlos Moedas, a dividir com o demérito de Fernando Medina… – e outras câmaras importantes. Ganhar uma determinada câmara, arrasar um bastião do adversário, conseguir uma surpresa – como as do PS em Viseu ou Bragança – pode ser o suficiente para disfarçar um desaire mais amplo.
Na noite eleitoral de domingo, um certo triunfalismo de José Luís Carneiro, que respirou de alívio por repor, nas autarquias, o velho bipartidarismo, apenas foi possível pela comparação com os resultados das legislativas de 18 de maio. Mas o desempenho do PS nas autárquicas deste ano não resiste à verdadeira comparação que deve ser feita, que é com eleições similares, há quatro anos. É verdade que, em termos de capitais de distrito, o PS conseguiu colocar algumas lanças em África: Coimbra, Faro, Évora, Viseu e Bragança não pertenciam à gestão socialista. Mas voltou a falhar Braga, que lhe escapa desde 2013; não comanda o Porto desde 2001; estará, no mínimo, oito anos sem governar Lisboa; perdeu Sintra, a segunda maior autarquia em número de eleitores; perdeu Gaia, a terceira; falhou o primeiro lugar em número de câmaras e de freguesias e perdeu a presidência da Associação de Municípios. Cantar uma “meia vitória” é não perceber o que é que se passou, e se passa, desde maio deste ano. Há algumas semanas, José Mourinho, treinador do Benfica, no final do jogo no Dragão contra o FC Porto, declarou: “Não podíamos perder este jogo. Estamos a quatro pontos, ficávamos a sete.” E declarou-se satisfeito com o 0-0 registado. Nestas eleições autárquicas, José Luís Carneiro terá dito mais ou menos o mesmo: perdendo claramente, ficaria a sete pontos. Agora, os socialistas têm de renovar o plantel e rever os processos de jogo. Nestas eleições, “só colocaram o autocarro”.
O PS pode, aliás, pôr os olhos no fenómeno de Loures e em Ricardo Leão, um caso de estudo, no combate eficaz à direita radical (talvez não tanto ao populismo, mas que, sem extremismo, será sempre mais benigno…). À base de carisma, proximidade, entendimento dos sentimentos dos seus eleitores, sentido prático e perseverança contra o politicamente correto, o autarca de Loures renovou a maioria absoluta, depois dos casos mediáticos dos motins de outubro e novembro de 2024 (na sequência do homicídio de Odair Moniz) e dos despejos do Bairro do Talude. Note-se que, em Loures, ainda assim, o Chega (embora a grande distância) obtém o segundo lugar. Tivesse Ricardo Leão outra postura, em linha com a dos signatários bem pensantes da carta aberta que o acusaram de trair os valores do PS, e hoje o Chega cantaria vitória numa câmara “grande” e num dos concelhos mais importantes da Área Metropolitana de Lisboa, ainda por cima, simbólico, por ter sido o casulo de André Ventura, no dealbar da sua carreira política. Mal ou bem, Ricardo Leão mostrou como se contém o avanço da extrema-direita e – ao contrário do que espalharam algumas narrativas – não necessariamente usando os mesmos meios dessa extrema-direita. Tendo em conta o nivelamento por baixo das lideranças políticas, Ricardo Leão bem poderá ser o próximo líder do PS – e os leitores leram aqui primeiro.
À derrota – não há outra forma de o dizer… – do Partido Socialista corresponde um inverso histórico: desde 1985, com um Cavaco Silva também minoritário, que o PSD não ganhava umas eleições autárquicas, tendo um primeiro-ministro em exercício. Só isto faz de Montenegro um líder de sucesso e plenamente confiante. Em ano e meio, são três vitórias eleitorais (sem contar com as regionais), que só não são consecutivas por causa do “fenómeno Marta Temido” (PS) nas europeias do ano passado. Luís Montenegro, pé ante pé, vai cimentando a posição. Dando o palco todo a Carlos Moedas, em Lisboa, que, inusitadamente, foi o último a falar, na noite eleitoral, Montenegro preferiu festejar, no Porto, com Pedro Duarte, sua escolha pessoal. Foi uma decisão arriscada, que podia ter saído tão frustrada como a da presença, em 2023, numas eleições regionais da Madeira, de má memória para o PSD. Mas essa simples decisão mostra a fibra de um líder que arrisca.
Claro que, no mesmo passo, vai rementendo, neste rolo compressor, o mito do regresso de Pedro Passos Coelho para as brumas da memória. O que não é pequena coisa. Tal como não é pequena coisa poder olhar de cima para baixo, nem tanto para José Luís Carneiro – cuja derrota foi honrosa – mas para André Ventura, que sai esmurrado e de ego machucado destas eleições. E isso não tem preço, nas vésperas das negociações para a aprovação do Orçamento do Estado…
Mas a derrota do Chega é mais ilusória do que real. É certo que conquistou apenas 10% dos objetivos de Ventura, que começou por “exigir” 30 câmaras. E que não conseguiu confirmar alegados bastiões no Alentejo, nem no Algarve, onde, com a exceção de Albufeira, obteve votações humilhantes, se comparadas com as de maio. Mas, na Península de Setúbal, com autarquias mais populosas, onde, é certo, esperava ganhar alguma coisa, perdeu à tangente. Sesimbra e Palmela foram palco de uma luta dramática com a CDU, que resistiu, à pele, ao teste de stresse. Com o Montijo, estas foram câmaras decididas no photofinish. E o Chega consegue afirmar-se como terceiro partido mais votado em quase toda a parte. E, no “quase” que falta, ficou, diversas vezes, em segundo lugar. Isto é: por baixo da finíssima camada de tinta laranja e rosa que voltou a colorir as infografias dos resultados, no mapa nacional, esconde-se uma grossa crosta com o azul-escuro do Chega, apenas à espera que as tintas coloridas da superfície venham a desbotar.
Mais: André Ventura dava de barato esta “derrota”. A sua campanha foi outra. Uma campanha tão unipessoal como o seu projeto no partido Chega. Enquanto os seus adversários de janeiro “ressonavam”, ele fazia a primeira volta ao País da sua campanha presidencial, sendo recebido com entusiasmo em muitos locais e servindo-se dos candidatos do Chega para cavalgar a onda. Presente em todos os cartazes autárquicos, tem o primeiro plano em todas as fotos de campanha. Ele não está ao lado dos candidatos: os candidatos é que estão ao lado dele (foi impossível encontrar, no serviço da Lusa, uma foto de campanha em que Ventura não esteja em primeiro plano, na passagem por Albufeira, câmara ganha pelo deputado Rui Cristina que aparece sempre, deliberadamente, em posição secundária). Mais ainda: só Ventura discursa, em cada terriola, estando os candidatos impedidos de intervir, abrindo-se poucas exceções para as quais sobram os dedos de uma mão. Na primeira declaração de circunstância aos jornalistas, quando já se percebia que candidatos como Rita Matias ou Pedro Pinto resultariam em flops, o líder do Chega começou logo a falar no dia 18 de janeiro, para o “tira-teimas”. Pressurosas, algumas televisões privadas – pelo menos, um canal – apresentavam, em cima dos resultados do Chega, e a despropósito, sondagens mais favoráveis para as presidenciais… Aliás, ao lançar às feras os nomes mais mediáticos da sua bancada parlamentar, Matias, Pinto, Frazão, Ventura sujeitou-os à humilhação de ficarem a saber que nada valem sem ele. O homem ganha sempre.