É verdade que era apenas uma piada sem consequências práticas. Mas uma alegada petição pública para pedir a Israel que não devolvesse Mariana Mortágua a Portugal, depois da detenção dos ativistas que seguiam na flotilha humanitária para Gaza, terá conseguido dezenas de milhares de assinaturas. Podia ser apenas uma manifestação humorística, mas mais de 90% dos que assinaram terão pensado que era a sério. Claro que se pode brincar com tudo, e a ideia, como peça de humor, até podia ter a sua piada. Só que estes “peticionários” não estavam a brincar. Embora inofensiva, esta iniciativa não anuncia nada de bom para o futuro da democracia. A polarização estúpida e o mata-esfola do debate político fazem emergir, em todo o seu esplendor, a grunhice nacional. Como emergiu, neste episódio. Mas também demonstra a degradação do debate público em Portugal. Não pode, simplesmente não pode, existir uma petição séria para que um país estrangeiro mantenha preso um cidadão nacional por “crimes de pensamento”. É o livre-arbítrio do insulto, do caceteirismo, da falta de cultura democrática e da ausência de valores civilizacionais básicos. E é demonstrativo, no limite, de falta de patriotismo.
Dito isto, Mariana Mortágua pode e, na opinião do autor deste texto, deve ser criticada. O Bloco de Esquerda fez uma apropriação abusiva da causa palestiniana e, com isso, partidarizou uma causa humanitária que devia ser de todos. Quando um líder político assume uma causa não partidária, acaba por partidarizar a causa. E os elementos hostis à causa ganham uma desculpa adicional para essa hostilização. Os simpatizantes dos palestinianos que não gostam do Bloco de Esquerda tenderão a distrair-se da solidariedade com as vítimas de Gaza para discutirem Mariana Mortágua. A partir de um certo momento, já não é Gaza que estamos a apoiar, já estamos a apoiar Mariana Mortágua e a sua agenda política. Abandonar Gaza, pelo contrário, confundir-se-á com opormo-nos ao Bloco. Esta lógica maniqueísta é irracional, mas efetiva. Em suma, o voluntarismo da coordenadora do Bloco de Esquerda pode ser motivado por boas razões humanitárias (esquecendo, para já, o interesseirismo partidário), mas corre o risco de provocar efeitos contrários à causa que diz defender.
Mariana Mortágua, uma das personalidades mais inteligentes da nossa vida política, se não a mais inteligente, sabe tudo isto muito bem. Sabia que o seu embarque na flotilha iria polarizar a sociedade e desviar o foco do que a flotilha visava – a situação em Gaza – para o centrar na sua pessoa. E é inevitável desconfiar de que era mesmo isso que ela queria. Faltam causas mobilizadoras ao Bloco e a Palestina é um excelente tema. Não se coloca em dúvida – é preciso que isto fique bem claro! – a sinceridade de Mariana Mortágua no seu apoio às vítimas do genocídio de Gaza, ao qual, já escrevi aqui antes, só faltará entrar na fase das câmaras de gás. Mas não resistiu a juntar o útil ao agradável. Sim, o Bloco está a apropriar-se do tema e da causa. E, com isso, afasta os simpatizantes da Palestina que recusam desfilar, nas ruas, de mãos dadas com Mariana Mortágua. Isso pode ser bom para o Bloco, que tem muito que recrutar entre as manifestações mais ou menos espontâneas que se vão formando para gritar por Gaza, mas não é bom para Gaza.
Gaza não é de esquerda nem de direita, como fica bem patente numa extraordinária intervenção recente do ex-líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos “Chicão”, na CNN. Terá sido, aliás, a sua melhor prestação televisiva de sempre. Disse o antigo presidente do CDS que se sente revoltado com “este senhorio pátrio” que se levanta “para achincalhar um grupo de portugueses que tiveram a coragem, pelos meios que estavam ao seu alcance, de se opor ao genocídio da Faixa de Gaza”. E que, sendo alguns participantes “ridículos e irritantes” – Chicão referiu Greta Thunberg, mas teve a elegância de omitir o nome de Mariana Mortágua… –, “entre genocidas e ridículos irritantes, não tenho dúvidas de que lado é que estou”. Vindo de onde veio, esta intervenção pública terá feito mais por Gaza do que o folclore à volta de Mariana e da flotilha. Os políticos devem persuadir, conquistar as consciências pela lógica e pelos princípios, como fez Chicão, e não entrar em bravatas, como fez Mortágua. A líder do BE podia apoiar a flotilha – mas não devia ir nela. Nesta matéria, o Bloco polariza, não agrega. Aproveita-se, não aproveita.
O mesmo se pode dizer da eficácia das manifestações, por essas cidades europeias fora, ao ritmo de um gigantesco “Climáximo”, tendo o contágio mimético já chegado a Portugal. Como nas ações climáticas radicais, o boicote de eventos como a Volta a Espanha em Bicicleta ou o bloqueio a um debate democrático no âmbito das autárquicas ou a paragem forçada de transportes públicos não só não conquistam ninguém para a causa das vítimas de Gaza como tendem a levar o cidadão comum a antipatizar com a causa. As ações radicais que põem cidades em pé de guerra servem os interesses objetivos de Israel. E prejudicam, objetivamente, os interesses dos palestinianos.
Há 33 anos, o Lusitânia Expresso, navio que se dirigia a Timor-Leste para apoiar os timorenses oprimidos pela selvajaria indonésia, recolheu as simpatias da generalidade da opinião pública. Nenhum líder partidário de primeiro plano se apropriou do Lusitânia Expresso e muito menos algum embarcou nele. Dos passageiros, destacava-se o general Ramalho Eanes, já então um verdadeiro e consensual senador da República. Quando, ao primeiro aviso indonésio, o navio fez meia volta, levantaram-se algumas críticas sobre a falta de bravura da tripulação, como se estivéssemos perante um vaso de guerra conduzido por forças militares. Não: o navio marcou pontos, chamou a atenção para a situação em Timor-Leste e teve os seus devidos efeitos propagandísticos. A iniciativa, organizada pela sociedade civil (o Forum Estudante), manteve-se “civilista” até ao fim e conseguiu, plenamente, os seus objetivos. Esta flotilha terá obtido os mesmos efeitos, em boa parte da Europa. Em Portugal, eles terão sido inquinados pela partidarização, responsabilidade de Mariana Mortágua.
E não vale a pena insistir na “extrema coragem” ou no “heroísmo” dos participantes na flotilha. O máximo que podia acontecer-lhes foi o que, efetivamente, lhes aconteceu: serem parados, detidos e repatriados. Israel nunca afundaria qualquer navio nem assassinaria qualquer ativista desarmado. Os israelitas já tiveram danos reputacionais que cheguem, sem terem necessidade de dar esse “prémio” à flotilha. Talvez tivesse sido mais inteligente, aliás, que, uma vez inspecionados os barcos para o despiste de armamento (o que seria aceitável), as autoridades de Israel tivessem consentido que a flotilha chegasse mesmo a Gaza, para ver o que acontecia… Coragem, mesmo a sério, tiveram os homens de Henrique Galvão, quando, em 1961, desviaram o paquete Santa Maria, conseguindo o objetivo de colocar a pressão da opinião pública mundial, antes distraída, sobre a ditadura portuguesa. Do grupo de bravos da Operação Dulcineia, por acaso, fazia parte um grande operacional chamado… Camilo Mortágua. O pai de Mariana. Mas essa é outra história. Esses eram outros tempos.