Assim que as notícias saíram – e a violência com que as televisões invadiram os portões da escola da Azambuja devia ser algo de reflexão profunda – as teorias multiplicaram-se: era vítima de bullying; via conteúdo relacionado com o ideário nazi na internet; tinha problemas psicológicos… a verdade é que ainda hoje não sabemos o que terá levado o pequeno Dinis a esfaquear seis colegas na escola que frequentava há anos. Mas ninguém se coibiu de tentar adivinhar: nem colegas, nem encarregados de educação, nem comentadores televisivos.
Ainda não tinham passado duas horas do ataque, e era possível ouvir nas rádios e ver nas televisões crianças de 11 e 12 anos a fazer declarações “com a autorização do encarregado de educação” – como, aliás, não poderia deixar de ser. Crianças que estavam em choque porque tinham visto um dos seus a cometer uma atrocidade inominável eram colocadas defronte de microfones para falar ao País inteiro sobre algo que nem ainda tinham processado.
Os grupos de Whatsapp encheram-se de teorias, as contas de Instagram acompanharam – ter eliminado a minha conta de Facebook há anos não me deixar afirmar o que por lá se terá passado, mas aposto que não terá sido diferente.
O medo é solo fértil para o crescimento de certezas, sobretudo quando tememos pelos nossos. Mas é preciso puxar o travão de mão para que não entremos em histerias coletivas e, sobretudo, para conseguirmos dar aos nossos filhos aquilo de que eles precisam em situações como estas: tranquilidade, segurança e recolhimento.
Apesar do mediatismo do caso – óbvio e expectável – não é preciso embarcarmos nós na aventura do espetáculo. Proteger os nossos filhos é também protegê-los da vida pública, ainda que agora os termos públicos e privados pareçam muito baralhados. Não deviam estar.
A minha filha no outro dia dizia, com ar de absoluta incredulidade: “Mãe, eu não apareço na internet! Ninguém sabe quem eu sou!” Ainda não tem idade para perceber, mas não aparecer na internet com a idade dela é, possivelmente, o melhor presente que lhe podemos dar nesta altura. A ideia de que tudo tem de ser partilhado com um exército de seguidores foi-se inculcando na nossa cultura, mas não sei bem em que altura deixámos de pensar nos riscos que isso acarreta. E não estou a falar somente das questões mais fáceis de explicar– pessoas que não conhecemos saberem em que escola andam os miúdos, conhecerem as suas rotinas, saberem como as aliciar se lhes der na gana – mas sobretudo das outras: o perfeito disparate de fazermos os miúdos acreditarem que a vida dentro dos ecrãs é muito mais importante e real do que a vida (pasme-se!) real que devem viver.
E sim, a culpa é nossa, que tantas vezes lhes atiramos um “vou já”, quando nos chamam e estamos a responder a mensagens ou a ver contas nas redes sociais. A culpa é nossa, que tantas vezes estamos a passear com eles, mas de olhos postos no telefone. A culpa é nossa, que nos sentamos a ver um filme, mas temos o olho a espreitar o telefone. Porque o que lhes estamos a dizer, de cada vez que uma dessas coisas acontece, é que eles não são suficientemente importantes. Que o que está naquela vida digital é prioritário.
Não sei em que momento perdemos a noção de presença, mas sei que temos de repensar urgentemente os exemplos que estamos a dar às novas gerações. Está mais do que provado que os ecrãs têm muito mais custos do que benefícios para as nossas crianças e adolescentes, cujos cérebros ainda estão em formação. Se não conseguimos, nós adultos, afastar-nos das redes, da exposição pública e do apelo constante das notificações, não sei bem como lhes podemos ensinar o contrário. E esse contrário, neste caso específico com que comecei este texto, era precisamente agarrar nas crianças profundamente traumatizadas, que viram um dos seus colegas esfaquear amigos, e dar-lhes a presença de que eles precisavam. Um abraço, o sossego de casa e as explicações que ajudam a processar. Atirá-los para televisões, rádios ou redes sociais não é – garanto – proteger as pessoas a quem queremos mais. Lamento, pais, mas a culpa de parte desta loucura que vivemos é também v(n)ossa. Quando mais cedo admitirmos, mais rápido resolvemos.