1. Neste início de 2024, não consigo escapar ao que creio ser um sentimento generalizado: a profunda preocupação – e a tristeza, o espanto, a revolta – com o estado do mundo e sua evolução previsível ou provável. Que torna cada vez mais difícil manter e alimentar a esperança indispensável para travar os combates necessários e vivermos uma vida digna. Sem falar de outros conflitos graves, nem das grandes questões de fundo que ameaçam o planeta, bastam as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente para causarem aquele sentimento. Porque são terríveis em si mesmas e no que significam para a Humanidade – para a ordem internacional, as relações entre as nações, a paz no mundo. E porque não se vislumbra o seu termo, muito menos um desfecho justo.
2. A criminosa invasão da Ucrânia pela Rússia mostrou a heroica resistência de um povo, a coragem de um líder, uma louvável grande solidariedade internacional. O único fim justo para a guerra seria uma “vitória” completa, com as respetivas consequências, do país invadido. A verdade, porém, é que, face à enorme desproporção de recursos, de população, etc., por maior que seja o apoio internacional (nunca ilimitado em meios e no tempo), afigura-se impensável essa “vitória” da Ucrânia. Por isso, havia (há) que procurar a paz, tendo como condição mínima a saída das tropas invasoras e a preservação integral do território ucraniano ao tempo da invasão. Mais, desejavelmente (mas utópico?), um referendo, sob os auspícios da ONU, do “anexado” pela Rússia em 2014.
Ora, é preciso ser bastante otimista para pensar que isto vai suceder em breve…
3. Quanto ao Médio Oriente, ainda pior. Após o bárbaro ataque a Israel por parte do Hamas, a resposta de Israel tem ultrapassado todos os limites: em nome de um legítimo direito de defesa, e até de uma talvez compreensível reação/retaliação, nem por uma variante do há muito inadmissível “olho por olho, dente por dente” se fica… Não: estamos perante uma “carnificina” do povo palestiniano, já com mais de 20 mil mortos, em grande parte crianças; uma “devastação” causada por bombardeamentos que nada poupam, de casas, bairros residenciais ou hospitais a campos de refugiados; um verdadeiro cortejo de crueldade e de horrores de todo o género. (Entre parênteses, note-se que o Hamas mostra também um enorme desprezo pelos palestinianos em geral, decerto entendendo que a sua, do Hamas, “causa” justifica tudo e o que está a acontecer até o favorece…)
Ora, mesmo sendo muito otimista, não se pode acreditar que esta realidade vá mudar tão cedo. E que sequer a médio prazo se chegue à única saída possível e desejável: o reconhecimento de dois Estados que possam (con)viver e que se respeitem.
4. Umas das múltiplas consequências dramáticas destas duas guerras é ter mostrado de novo a ineficácia da ONU, a sua impossibilidade de decisiva ação concreta, mormente com a Rússia e os EUA a usarem o – e abusarem do – seu direito de veto. Sublinhe-se ainda que Israel é o país que mais decisões da ONU já violou e que foram vítimas dos seus bombardeamentos em Gaza cerca de 130 funcionários da organização, uma “mortandade” sem precedentes desde que ela existe (1945). E, a coroar toda a sua condenável conduta, Israel não só continua a violar violentamente a mais elementar ética e o Direito Internacional como ainda acusa o secretário-geral António Guterres de “baixeza moral” e de ser um “perigo para a paz mundial”!
5. Nem se acredita, mas é verdade. Todos vimos e ouvimos. E, num mundo assim, num mundo em que o país de Borges, Sabato, Piazzolla elege um ultra e desvairado Milei (O Louco, título da sua biografia) como Presidente; num mundo em que Trump aparece como “favorito” a ser de novo Presidente dos EUA, com todos os perigos inerentes; num mundo em que… etc., etc….
… o que me ocorre é o final do famoso texto de John Donne, poeta inglês dos séculos XVI/XVII: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, uma parte de um todo. (…) A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.”
À MARGEM
António Guterres
Na ONU, Guterres tem mostrado as suas imensas capacidades e qualidade, tal como aconteceu em todas as suas anteriores funções. Agora mais notória uma por vezes, entre nós, menos visível: a coragem. Portugal pode e deve orgulhar-se dele. Como já há muito defendo, devia ser nosso Presidente da República, porque o País muito ficaria a ganhar. Mas depois do que está a “sofrer”, e do que “sofreu” como Alto Comissário para os Refugiados, ser-lhe-á isso ainda exigível?
Já agora, esclarecimento para os praticantes de certo mau jornalismo e comentarismo, que abundam: Guterres não se demitiu de primeiro-ministro por o País estar no “pântano” – disse que se demitia exatamente para o evitar, dado o empate que existia na composição do Parlamento.
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