Depois de ser revistado, e de deixar o telemóvel num cacifo, entrei na prisão. Chega-se a Vale de Judeus como a um outro país. O cenário lembra, em certa medida, os de alguns filmes, ou de ambientes de pós-guerra, porque, nas imediações, toca-nos uma sensação de ruína e abandono. Cruzam-se florestas que escondem edifícios cujos fins não se discernem, até se alcançar um grande ermo, um largo que, naquele quente mês de abril, tinha cheiro a deserto. O estabelecimento prisional de alta segurança de Vale de Judeus recebe sobretudo condenados a penas de longa duração – há quem lhe chame prisão fim de linha – e é com vários deles que tenho encontro marcado. Carrego uma caixa com trinta livros, todos de autores portugueses, para oferecer à biblioteca prisional.
Há uns bons anos, levei alguns escritores à prisão de Caxias. Eram sessões que os reclusos adoravam. E eu também, porque muitos eram grandes leitores e sentiam-se gente naqueles dias. Os anos passaram e eu, despindo o fato de editor, publiquei um livro como autor. Meses depois, fui contactado pela antiga administradora do Estabelecimento Prisional de Caxias dizendo-me ter gostado muito de o ler e convidando-me a ir à prisão em que, naquele momento, trabalhava: a prisão de alta segurança de Vale de Judeus, aquela à qual, segundo ela, os escritores nunca queriam ir.
O mais extrovertido e afável dos homens que conheci na penitenciária de Vale de Judeus cumpre uma pena de 42 anos. É verdade e lá chegarei. Foi o primeiro a dirigir-me a palavra, quando entrei naquela biblioteca cheia de livros gastos, muito manuseados. Ao cruzar a ombreira da porta, um impulso levou-me a cumprimentar aqueles homens, na maioria jovens, um a um. Senti que deveria ser assim. Eles estavam sentados, postos em sossego, e acho que gostaram de que o tenha feito. Cumpridas as apresentações e as demais formalidades, três deles partilharam as respetivas impressões sobre o meu livro. Eram homens muito diferentes. O mais novo, se bem me recordo, tinha ar de passar muitas horas no ginásio e era bastante reservado. Mas venceu a timidez e fez uma análise muito certeira e completa. Outro procurou deslindar tudo o que no livro está codificado. A dado momento, perguntou-me por que motivo, naquela história, as mulheres saíam sempre por cima. Também me ofereceu um livro que publicou e que cruza filosofia e matemática. Já li uma boa parte e tem andado comigo no carro. E foi também ele que, no final, em voz alta, leu um longo poema alusivo ao meu livro, no qual refere, nos últimos versos, que, em Vale de Judeus, o diabo tenta / mas não se esquece Deus. Já o homem simpático que referi no começo deste parágrafo procurou ler o subtexto e encontrou hipóteses divertidas para muitas das minhas opções narrativas. É também um homem da escrita e dos livros. Na prisão em que esteve anteriormente, era até o responsável pela biblioteca. Julgado no Brasil, pediu para ser extraditado para Portugal quando soube que o final dos pais se aproximava. Não queria que morressem sem estar por perto, mesmo que atrás das grades. De sorriso fácil, entre a barba branca, tem ar de avô dedicado. Contou-me que, no Brasil, vivia tranquilo num bairro muito solidário. Como exemplo, referiu que era comum chegar do supermercado e esquecer-se das compras no buggy, por ter bebido demasiado. O que fazia era ir deitar-se na cama de rede, adormecendo até ao dia seguinte. Mas ninguém lhe mexia nas compras. Aliás, quando acordava, os vizinhos tinham-lhas posto do lado de dentro do quintal. Será que isso acontecia pela amabilidade dele, ou pelo facto de aquele homem que agora tem ar de avozinho ser, como ele próprio me disse, um bandido formado nos EUA e no pior Brasil, capaz de cravar uma faca nas entranhas sem que a vítima se aperceba? E é estranho dizer que nos demos bem? E que nos correspondemos? Aliás, há tempos, enviou-me, por correio, um conjunto de contos manuscritos muito divertidos.
Entre outras memórias que guardo, foi particularmente interessante ouvi-los dizer que a leitura – e a palavra foi usada por um deles – os prende. E que os transporta para outros universos e contextos, e que neles se sentem livres. A leitura como forma de evasão é particularmente especial, neste quadro, claro está, e foi o centro da minha conversa com aqueles homens. Vários haviam lido o livro e tinham-no discutido com as professoras, mas outros aguardavam que os exemplares da biblioteca regressassem das mãos de quem os lia naquela altura e ficassem disponíveis. Dois disseram-me que queriam lê-lo por abordar o tema do suicídio. Um deles pôs-se a olhar as mãos e disse: é que eu tenho pensado nisso várias vezes. E eu desejei que o meu livro, que não tem qualquer pretensão motivadora, ou pedagógica, pudesse de algum modo ajudá-lo. Nem que fosse ocupando-lhe as horas e a cabeça, para que não se pusesse a tentar encurtar a pena.
No final, voltei a cumprimentá-los a todos. Ou melhor, fiquei feliz por serem eles a virem cumprimentar-me e agradecer-me a ida à prisão. Alguns destes momentos finais, acompanhados de breves conversas, em que me confessaram os crimes pelos quais pagavam, ou os sonhos que ainda acalentavam, foram o melhor de tudo. A alguns, disse que talvez escrevesse sobre a experiência. Quando estava quase a sair, houve um que me pôs a mão no ombro. No momento em que me voltei, ele disse, apontando para a mesa: não se esqueça dos óculos de sol, senão ainda lhos roubam. Rimo-nos todos. Foi um dia bom.
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