1. A Justiça é desde há muito um dos mais graves problemas do País. E se já foi dos que mais se falou, hoje está muito menos na ordem do dia dos media e das modas do que o SNS, os blocos de partos, as greves de professores, as refregas partidárias e outras. (Por exemplo, abundam as reportagens com pessoas comuns há horas em filas de espera nos hospitais, inexistem reportagens com pessoas comuns há anos à espera da resolução dos seus casos nos tribunais.)
Agora, quando se fala da Justiça é, em geral: a) a propósito dos megaprocessos, em que são arguidos poderosos da política e/ou da finança; b) quando estão em causa os futebóis e similares; c) para noticiar, ou mesmo reproduzir, “extraídas” dos respetivos processos, acusações que até podem não ter nenhum fundamento mas sujeitam os acusados a uma pré-condenação, em regra sem direito a defesa e para sempre.
2. Tema, a Justiça, de badalados congressos, grandes encontros e debates, promovidos até por Presidentes da República, os resultados foram nenhuns ou escassos. O que até certo ponto se compreende: os seus problemas são de complexa e dificílima resolução. Por múltiplos motivos. Entre os quais, além dos sempre invocados, como “a falta de recursos”, destaco dois:
a) o conflito, com um ponto de equilíbrio sempre precário, entre o exercício pelos cidadãos de todos os seus direitos e a necessidade, para ser justa, de uma Justiça célere – sendo aqueles direitos muitas vezes usados apenas para a dificultar, retardar ou mesmo impossibilitar;
b) o bom ou mau funcionamento da Justiça em muito depender, no concreto, da qualidade dos seus operadores, em especial dos magistrados – não havendo maneira de a assegurar, porque se pode melhorar a sua formação profissional mas não garantir o muitíssimo mais que ser um bom magistrado exige.
3. Eu próprio no passado escrevi muito mais sobre o tema, embora sem contar casos da minha larga experiência na advocacia – a par, e muitas vezes em prol, do jornalismo. Se hoje a ele volto é sobretudo para manifestar a minha enorme perplexidade, com laivos de indignação, perante o acórdão da Relação de Évora relativo à sentença condenatória, na comarca de Beja, de sete militares da GNR acusados de sequestrarem, humilharem, agredirem, torturarem (fazendo-os inalar gás pimenta) um grupo de imigrantes asiáticos.
Tratou-se de um caso execrável de violação gravíssima dos deveres de qualquer cidadão, para mais “agente da autoridade”, um caso execrável de desumanidade, racismo, malvadez, violência, ódio – em parte “documentado” em gravação que um dos arguidos fez, para se divertirem e decerto vangloriarem dos seus atos.
Face a tudo isto, e a uma sentença em meu juízo nada “severa”, o tribunal de recurso, sintetizo*, absolveu um dos arguidos e reduziu as penas dos outros, com o único condenado a prisão efetiva a passar a tê-la suspensa. Mais, incrível cereja gigante no topo do bolo, revogou a pena acessória de proibição temporária do exercício de funções. Isto é: além do resto, estes sete guardas, dois deles reincidentes, continuam a prestar os seus “bons serviços” à corporação! Falta-me espaço, e até me faltam palavras, para qualificar isto tudo…
4. Para o que considero a extrema gravidade do atrás descrito, contribui ainda o que o caso representa para a imagem da posição de Portugal face aos imigrantes, através da ação de forças de segurança, que mais obrigação têm de os respeitar e proteger. E o que representa para a estrita obrigação de a Justiça, o sistema judicial, ser um garante da proteção dos Direitos Humanos, vertidos na legislação portuguesa, em particular face a abusos, prepotências e violências policiais, em sentido amplo. É algo que vem de trás, mas infelizmente continua, em menor grau. Em favor das próprias forças de segurança, e da democracia, para cuja defesa são importantes, tais práticas têm de ser inflexivelmente combatidas e, quando se verifiquem, exemplarmente punidas. Só assim se fará Justiça.
*Não consegui ter acesso ao teor do próprio acórdão, escrevo com base na notícia a seu respeito. Assim, se houver qualquer erro ou lapso, peço desculpa.
À MARGEM
Mais uva, menos parra
Não é por aí, claro, que as principais dificuldades na área da Justiça se resolverão, mormente a da celeridade processual. Mas poderá contribuir um “poucochinho” para isso – e será positivo para a compreensão, clareza, até limpeza, das peças processuais. Refiro-me ao apelo de um grupo de advogados e magistrados no sentido de acabar com o extenso e desnecessário palavreado de muitas daquelas peças, de alegações a decisões. Sobretudo decisões, que, dizem (e bem), por vezes parecem “o inferno de Dante em laudas burocráticas: os relatórios alongam-se, as citações abundam e o essencial perde-se no meio de toda essa palha”.
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