E o frio foi-se tornando primavera. A minha primeira primavera. Eu estava quase a fazer doze anos. Março amolecia-me a raiva do regresso, a Metrópole podia ser encantadora. Farfalhudas, as árvores espanejavam-se em alegres trinados, o mar espraiava-se num desconhecido azul, a terra coloria-se de margaridas, havia borboletas suspensas na luz, em todo o lado uma vontade de cantar. Estava tudo a correr bem. Estava tudo a correr bem, tendo em conta as circunstâncias.
Semanas antes, eu fora chamada às Caritas e convencera as senhoras voluntárias a darem-me a saia verde com florinhas cor-de-rosa em vez da camisola esquisita que me queriam impingir. A saia estava-me muito larga na cintura, mas ia até aos pés como as maxis que as raparigas da Metrópole usavam. A Gabi emprestara-me alfinetes de ama para improvisarmos duas pinças e garantira-me que não se notava o desacerto do tamanho, quem me visse de lado, julgaria até que fora feita por medida. Para mais, a saia viera da América e não da Jugoslávia ou da Checoslováquia, como a maior parte da roupa que nos davam, Meide ine iu ése ei, corrigiu-me a Gabi quando li a etiqueta. A Gabi era uns quatro anos mais velha do que eu e fugira com a família de Malange para a África do Sul numa caravana de camiões, antes de regressar à Metrópole. Contava muitas vezes como tinha aprendido inglês no campo de refugiados, Um dia acordei e compreendia tudo o que me diziam, foi como se durante o sono alguém me tivesse aberto a cabeça e posto aqui dentro um disco com o inglês todo, dizia batendo com a ponta do indicador no cocuruto. E eu acreditava que era possível abrir-se uma cabeça e mudá-la para sempre, num segundo. Estava tudo a correr bem.