Há pouco mais de um mês foi publicado, na prestigiada revista médica New England Journal of Medicine, um estudo que demonstrava de forma muito clara a eficácia de um tipo de imunoterapia no tratamento de um subtipo de tumores do reto. A prática clínica neste tipo de cancro habitualmente envolve cirurgia, seguida de radioterapia e quimioterapia. Neste estudo, realizado por investigadores do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova Iorque, os 12 pacientes com tumores do reto participantes no estudo, tratados apenas com “inibidores de checkpoints imunitários” tiveram uma resposta clínica e objetiva extraordinária, estando, à data de publicação do artigo, em remissão, sem doença detetável, alguns há dois anos.
A imunoterapia, num contexto oncológico, é um tipo diversificado de tratamentos que têm como denominador comum a ação do sistema imunitário (nas suas várias componentes), resultando no reconhecimento e eliminação de células tumorais, na redução do crescimento do cancro (podendo os pacientes ficar em remissão clínica) e – dependendo da eficácia – mesmo na sua eliminação.
O estudo da Imunologia tem mais de 500 anos, e no caso concreto da imunologia tumoral os trabalhos de Paul Ehrilich (proponente da teoria da “vigilância immunológica”, no início do século XX), Frank Burnett e Peter Mendawar (conceito de tolerância imunológica, proposto nos anos 50 e 60 do século XX), entre muitos outros, são incontornáveis. Pela sua complexidade e especificidade, a promessa (o potencial) do sistema imunitário no tratamento do cancro tem sido defendida ao longo de vários séculos, com inúmeras histórias de insucesso seguidas de outras tantas bem-sucedidas.
Ao inibir a ação dessas moléculas, os linfócitos T podem desencadear uma resposta imunitária “sem limite”. Clinicamente, o que se observa é que essa estratégia tem, para alguns tipos de cancro, um sucesso assinalável, demonstrando eficácia terapêutica também em outros cancros
Mas vamos por partes. Em primeiro lugar, é necessário apreender vários conceitos biológicos fundamentais, para conseguirmos compreender como se chegou a tratamentos eficazes do cancro com medicamentos baseados em imunoterapia.
De forma simplificada, pode dizer-se que o conceito de “tolerância imunitária”, por exemplo, sugere que o nosso sistema imunitário terá evoluído para identificar e eventualmente eliminar invasores, como vírus e bactérias, tolerando a presença das células que constituem os nossos orgãos e sistemas. A perda de tolerância imunitária, no limite, resultará no reconhecimento de células “do próprio” como “invasoras”, invocando uma resposta imunitária que pode levar, por exemplo, ao desenvolvimento de doenças auto-imunes (“imunidade contra o próprio corpo”).
Na verdade, o nosso sistema imunitário tem um grau considerável de tolerância para “o próprio”, sendo esse um dos problemas, no cancro: as células tumorais, se não forem suficientemente diferentes das normais, ou se desencadearem mecanismos que as tornem parcialmente “invisíveis”, podem não ser reconhecidas pelo sistema imunitário, o que as permitirá crescer e formar um cancro.
Outro conceito fundamental para a compreensão de sistemas biológicos complexos como o sistema imunitário diz respeito aos mecanismos de retro-controlo (“feedback”) ou de como controlar ações excessivas. Uma resposta imunitária com a finalidade de reconhecer e eliminar células “invasoras” tem um início (ativação) de resposta ao qual se seguirá um controlo (“final”) dessa resposta, evitando que esta seja exercida em excesso. Explicando melhor: perante uma infeção, os linfócitos (glóbulos brancos fundamentais na resposta imunitária) reconhecem o organismo invasor e são ativados para conseguirem eliminar esse alvo. Uma vez desencadeada essa acção, a forma de a controlar ou terminar a activação destas células, e a resposta imunitária, é exercida por moléculas denominadas “checkpoints imunitários”.
Os cientistas responsáveis pela descoberta de tais moléculas foram Tasuko Honjo e James Allison, nos anos 90 do século XX. Como em outras histórias de descobertas científicas, estas demoraram vários anos até serem aceites pela comunidade científica, e até serem traduzidas em terapias inovadoras. Laureados com o Prémio Nobel em Fisiologia e Medicina em 2018, as descobertas de Honjo e Allison permitiram, então, perceber os mecanismos centrais de retro controlo do sistema imunitário, contribuindo para uma melhor compreensão do aparecimento de doenças autoimunes e do cancro.
O tratamento dos pacientes com tumores do reto com inibidores dos “checkpoints imunitários”, mencionado anteriormente, visou precisamente retirar o mecanismo de retro controlo da resposta imunitária: ao inibir a ação dessas moléculas, os linfócitos T podem desencadear uma resposta imunitária “sem limite”. Clinicamente, o que se observa é que essa estratégia tem, para alguns tipos de cancro, um sucesso assinalável, demonstrando eficácia terapêutica também em outros cancros, como no tratamento do melanoma, por exemplo.
A investigação científica contribui para resolver problemas. Neste caso, a imunoterapia cumpriu a sua promessa.
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