Oda e eu somos filhos da mesma fornada. Em junho de 1994, a minha mãe e a dele chegaram ao fim da gravidez e prepararam-se para trazer mais um bebé a este mundo, ambas com algumas reticências quanto à conjuntura política do mundo, mas nada que lhes tirasse a felicidade própria da ocasião.
Desde que aprendi a falar, a minha família ensinou-me a pensar, a refletir e a contestar aquilo que não achasse justo, o meu avô sempre se orgulhou do meu lado revolucionário, característica que, no meio em que cresci, foi tão incentivada como alvo de brincadeiras e piadas sem maldade. No caso deste meu contemporâneo, a sua capacidade de questionar e reivindicar não pôde ser vista com tanta ligeireza. Nos anos da adolescência, juntou-se a um grupo de rebeldes como ele, que acreditavam na mudança e espalhavam uma mensagem de contestação e luta pela liberdade. Tornou-se oficialmente inimigo do Estado sírio aos dezasseis anos. Um terrorista.
Não quis entrar em pormenores, contou-me apenas que tinham matado todos os seus amigos, depois de serem perseguidos, presos e torturados. Aos dezassete, fugiu com a família para o Egito, entrou para a faculdade de engenharia no Cairo e, passados dois anos, o seu passaporte caducou. Foi à embaixada para renovar os documentos, mas o funcionário estava a par da sua situação criminal. Negaram-lhe a documentação, ordenaram-lhe que regressasse à Síria. Só tinha uma alternativa: fugir.
Oda deixou a família na capital egípcia e partiu para a costa, onde apanhou um barco ilegal que o levaria a ele, com mais trezentos, para Itália. Conhecemos, em Lisboa, essas imagens. Pagou três mil e quinhentos dólares e, navegadas poucas milhas, a embarcação cedeu por excesso de peso e má qualidade dos materiais. O naufrágio tirou a vida a mais de metade dos passageiros.
Oda sobreviveu, conseguiu chegar à costa e durante dois dias andou perdido no deserto. Se a polícia o apanhasse, seria preso por ter embarcado ilegalmente e logo deportado para a Síria, onde a morte, ou pior, o esperava. Conseguiu regressar ao Cairo, arranjar trabalho e juntar dinheiro para a viagem seguinte.
A família, de classe média, reunia também condições para ajudar o filho a sair do Egito. O total da passagem para a paz viria a ultrapassar os 10 mil euros. Da Turquia, Oda partiu para as ilhas gregas, num barco pequenino com o dobro do número aconselhável de passageiros. De Atenas viajou para a Macedónia e foi a pé até à Sérvia. Conta-me isto tudo com uma calma que me surpreende.
Atravessou a caótica fronteira húngara a pé, com milhares de desconhecidos. Conseguiu um táxi para Budapeste, dali um carro particular até Viena e por fim um comboio para Bruxelas, onde nos encontrámos. Já cá está há três meses e meio. Dorme em casa de um primo e passa o dia no centro para ter comida e uma muda de roupa.
“Amanhã vemo-nos de certeza”, diz-me à despedida, “eu estou sempre aqui, farto desta vida, desta espera, não faço ideia se hoje é terça, domingo ou sexta-feira.”
A verdade, que me dói, é que não mudaria nada se Oda soubesse que dia é hoje. O meu amigo quer continuar a estudar e voltar para a família, no Egito, onde tinha uma vida. Sonha com o fim do atual regime sírio, mas não tem vontade de regressar à sua pátria. “Se a guerra acabar nada me resta, tudo foi destruído, já não há nada de bom para ver. Foi-se tudo, já não existe nada do que me faria voltar”.
Oda e eu temos a mesma idade. Temos alguns sonhos em comum, mas oportunidades de vida assustadoramente distantes. Demo-nos bem, trocámos uma história triste, mas também muitos sorrisos. No fim da conversa, ele tinha os olhos brilhantes, quis confortá-lo, mas nunca hei de saber o que dizer. Ele também não saberia. Sorri-lhe. “Temos de esperar, vai tudo resolver-se”, foi o melhor que me saiu. Oda e eu temos a mesma idade.