Nasci numa família de Testemunhas de Jeová [TJ], em Luanda. Era, como as TJ denominam, uma criança “nascida na verdade”. Em 2000, com 8 anos, vim para Portugal com a mãe e a minha irmã mais velha. Instalámo-nos na região de Sines. Lembro-me de que a prioridade da minha mãe foi saber se havia uma congregação na zona. Encontrou-a e passámos a frequentá-la. Para ser sincera, quando era pequena, gostava muito daquilo. Tinha um carisma infantil muito comunicativo, que atraía as pessoas. As TJ são uma bolha feita para receber sempre bem, com muito amor, aconchego e união.
Ainda não tinha consciência da comunidade muito fechada que as TJ são, em que os membros se policiam no que ouvem, leem e vestem, e nas amizades fora da organização, que não podem passar do supérfluo. É-nos incutido, desde crianças, que temos de evitar ao máximo tudo o que “faça parte do mundo” exterior às TJ. E eu sobretudo desconhecia o que pode acontecer quando alguém quebra as regras.
Batizei-me em 2008 – a vinculação definitiva às TJ –, com a sensação de que era o que queria, além de ser o esperado de mim: já estudava a Bíblia há muitos anos e sentia uma crescente pressão no sentido de dar esse passo. Senti-me feliz nesse dia, também por fazer a minha família feliz, sem ter a noção da carga que estava a pôr sobre mim. E o cenário começou a mudar de maneira radical quando me apaixonei pelo Diogo, um rapaz de Soure, sem quaisquer interesses religiosos, e hoje meu marido e pai do meu filho Lucas, de 5 anos.
Conheci-o em 2009, pela internet, tinha 16 anos. Na altura, já se falava nos perigos desse tipo de encontros e, no início, tive cuidado. Só nos conhecemos pessoalmente cerca de um ano depois, de forma clandestina, em Sines. Mas sentia o peso do pecado que estava a cometer aos olhos de Jeová [Deus]. Manter uma relação amorosa com um “mundano” era o pior que uma recém-batizada podia fazer. Estava dividida entre coração e religião, e esse dilema começou a mexer comigo. Resolvi, então, abrir o jogo com a mãe.
Disse-lhe que estava a namorar, e ela achou que este era um rapaz da congregação. Tanto assim foi que puxou logo da Bíblia para me dar conselhos sobre como devia ser o “namoro puro” até ao casamento, de acordo com as regras das TJ. Eu disse-lhe que o meu namorado não era TJ. Desde esse dia, a relação com a minha mãe nunca mais foi a mesma. Nunca quis conhecer o Diogo, conversar com ele, perceber que tipo de pessoa era. Se a religião proibia, não havia sequer espaço para isso. Já volto a este assunto, que muito me dói.
Dirigi-me a um ancião, pelo qual tinha estima e admiração, ainda sob o peso do grave pecado que estava a cometer. Disse-lhe o que se passava, e a pressão constante sobre mim aumentou. “Então, já decidiste o que vais fazer?”, perguntavam-me. E eu andava sempre muito dividida – ora acabava com o meu namorado, porque não conseguia suportar a pressão, ora reatávamos.
Em 2012, fui estudar na Escola de Hotelaria do Estoril. Estava muito mais perto de Soure, e eu e o Diogo começámos a estar juntos com regularidade, aos fins de semana. Em 2013, entreguei-me de forma mais íntima ao Diogo. Era o pior pecado que uma TJ batizada podia cometer – ter relações sexuais fora do casamento. Apesar de querer e de estar numa relação com uma pessoa que conhecia e em quem confiava, o peso do “pecado” massacrava-me psicologicamente.
“Mudavam de passeio”
A pressão psicológica que sentia era tal que decidi contar ao ancião o que tinha acontecido. Nessa altura, eles agendaram uma comissão judicativa, o “tribunal” das TJ. Seguiu-se a pior experiência por que passei na vida. Tinha 20 anos e estava no meio de três homens, com responsabilidades na organização, que me perguntaram quantas vezes tinha tido relações sexuais, se havia usado proteção ou não, se tinha intenções de o fazer de novo. Eu, muito envergonhada, como se tivesse mesmo cometido o pior pecado do mundo, respondia a tudo, mas, depois, cansada daquela pressão, e sabendo que o único apoio que tinha era o do meu namorado, disse-lhes que não ia terminar a relação.
Mandaram-me sair da sala, para os anciãos decidirem a “sentença”, e fiquei no meio do Salão do Reino, sozinha, não estava lá ninguém, e com tudo às escuras. Nunca como naquele dia me senti tão só e abandonada, sensações que iriam perseguir-me.
Tinha 20 anos e estava no meio de três homens, com responsabilidades na organização, que me perguntaram quantas vezes tinha tido relações sexuais, se havia usado proteção ou não, se tinha intenções de o fazer de novo. Foi a pior experiência por que passei na vida
Anunciaram-me, então, a “sentença”: era desassociada [expulsa] das TJ, decisão que seria comunicada na reunião seguinte da congregação. Nessa altura, a minha mãe estava em Luanda. Enchi-me de coragem e telefonei-lhe. “Quero que saibas por mim que fui desassociada”, disse-lhe. E ela: “A notícia que me estás a dar dói-me tanto como quando perdi uma filha.” Essa perda aconteceu antes de eu nascer. Nem fui capaz de lhe responder. A minha mãe encarava-me como se também eu tivesse morrido, à semelhança das pessoas da congregação que me conheciam desde pequena e que, quando se cruzavam comigo na rua, ou desviavam o olhar ou mudavam de passeio.
Mudei-me para Soure, em junho de 2016. Em agosto seguinte, eu e o Diogo casámo-nos, e o nosso filho nasceu em 2018. É claro que me dói muito não ter hoje qualquer contacto com a mãe – até pelo deslaçamento do Lucas com a avó – e com as minhas três irmãs. Nas TJ, ser-se desassociado equivale a ter uma doença contagiosa. Mas a minha vida não estagnou, contrariamente ao que se vende na organização, quando diz que as pessoas que saem ficam condenadas a uma existência de miséria, errante, a serem peões no jogo de Satanás.
Hoje, a religião já não me diz nada. Sinto-me feliz, e só tenho pena de não ter saído mais cedo das TJ.
Depoimento recolhido por J. Plácido Júnior