Não conheci o meu pai; quando nasci, ele já tinha morrido. Vivia em Águas Santas, na Maia, com a minha mãe e uma irmã, numa casinha pequena, os três a dormir na mesma cama. Os meus avós ficaram com os meus três irmãos mais velhos e ajudavam no que podiam. A família passava muitas dificuldades, agravadas pelos problemas com o álcool. Além de a minha mãe beber, antes e durante a gravidez, tive uma ama que me dava bagaço quando era muito pequeno e, por isso, tenho esta deficiência. Outra ama batia-me.
Quando tinha 9 anos, a minha mãe morreu, não sei dizer bem do quê; penso que teve que ver com o álcool. Nessa altura, os meus avós também já tinham morrido. Só restavam uns tios, sem condições para ficar comigo. Por isso, fui viver para um colégio interno no Porto. Foi complicado, não queria ir para lá… começava a chorar sempre que me deixavam à porta. Passava os fins de semana com os meus tios, a dormir no chão, mas mesmo assim não queria regressar ao colégio.
Deveria ter saído de lá quando fiz 21 anos, mas dava-me bem com a direção, ajudava nalgumas tarefas, e deixaram-me ficar num quartinho. Não era capaz de ter uma vida independente e fui ficando. Nesse tempo, fiz alguns cursos e estágios, como de jardinagem, mas não arranjei um trabalho.
Como o colégio estava dentro de uma quinta e começaram a ter cavalos, fui eu quem passou a cuidar deles, e tinha muito gosto nisso, porque são animais muito meigos. Para aprender mais, fui passar uns dias num centro hípico e acabei por ficar como voluntário. Como compensação, davam-me aulas de equitação gratuitas.
Montar a cavalo é uma sensação muito boa; sinto-me feliz e livre, sei lidar bem com eles. Cheguei até a participar em competições de saltos de obstáculos, com bons resultados. Não tinha medo, só ficava um pouco nervoso antes das provas.
Mais tarde, surgiu a oportunidade de fazer a formação como tratador de cavalos, para jovens com deficiência, na Associação Equiterapêutica do Porto e de Matosinhos (AEPM). No final, fiz alguns estágios e tive várias propostas de emprego. Na AEPM, também estavam a precisar de contratar alguém. Como já conhecia as pessoas, e davam-me melhores condições, resolvi ficar.
Gosto muito do que faço e sou bom trabalhador, responsável e de confiança. Dizem que tenho uma sensibilidade especial com os animais, conheço-os muito bem. Às vezes, só pela maneira como mexem uma orelha, percebo que não estão bem. Nestes anos todos em que aqui trabalho [desde 2015], ainda não morreu nenhum cavalo. Ao longo da vida, sempre cuidaram de mim; é bom saber que também posso ser cuidador.
“Sinto-me orgulhoso das minhas conquistas”
Morei no colégio até aos 34 anos. De repente, a direção disse-me que eu tinha de ir embora passados uns dias. Fiquei em pânico, não sabia o que fazer. Chegaram a mostrar-me uma casa para onde me poderia mudar, mas estava a cair de podre, não tinha condições nenhumas. Na AEPM, apoiaram-me e encontraram um lugar para ficar, perto do centro hípico. Só tinha um saco de plástico com as minhas coisas. Arranjaram-me mobília, lençóis, toalhas, roupa… Não estava preparado para aquela mudança, não sabia fazer nada, nunca tinha vivido sozinho. Foi um ano muito complicado. Na associação, pela primeira vez, houve alguém a ensinar-me a tratar da casa, a fazer a higiene pessoal, a cozinhar, a lavar a roupa, a levantar dinheiro, a ir às compras. Eles ficaram surpreendidos, não imaginavam que seria tão difícil, porque viam-me tão cumpridor no trabalho e pensavam que tinha mais autonomia.
Comecei a fazer as competições do Special Olympics Portugal [destinado a pessoas com deficiência intelectual], fui campeão nacional e, depois, fui selecionado para participar nos Jogos Mundiais, em Berlim, em equitação, no nível mais avançado. Fiquei muito feliz. É a primeira vez que vou viajar para fora do País e é a minha primeira prova internacional
Havia também uma série de papelada de que era preciso tratar, para legalizar a minha situação e ter direito a toda a assistência por incapacidade. Escolhi a Joana [Pereira, presidente da associação] como minha tutora legal e, na brincadeira, até digo que é a minha mãe. Hoje, somos como uma família. Não foi fácil confiar, especialmente porque tive tantas pessoas na minha vida que me falharam.
Quando a AEPM começou a explorar a Quinta do Catassol, que pertence ao Lar do Comércio, na Maia, fizeram obras numa das casas para eu ficar lá a viver. Gosto muito da quinta, é um sossego, acordo com os passarinhos. Hoje, sei fazer tudo e tenho uma vida normal: pôr as máquinas a trabalhar, passar a ferro, fazer a comida, ir às compras – a coisa que me deu mais gozo comprar foi uma trotineta elétrica. Foi um salto muito grande, em pouco tempo. Há quem diga que sou uma referência para outras pessoas com deficiência cognitiva, pelo facto de ter ultrapassado tantas limitações, ainda para mais com esta história de vida complicada. Sinto-me orgulhoso das minhas conquistas.
Nestes últimos anos, aconteceu outra coisa importante: reaproximei-me da minha irmã – os outros três irmãos já morreram e também tinham problemas relacionados com o álcool – e da sua família. Temos uma relação ótima; quase todas as semanas vou visitá-la e passo as festas com ela. Esta era a irmã que, quando era pequeno, cuidava de mim – lembro-me de me dar banho numa bacia –, apesar de ser poucos anos mais velha do que eu.
Entretanto, continuei a montar e a participar em provas. Comecei a fazer as competições do Special Olympics Portugal [destinado a pessoas com deficiência intelectual], fui campeão nacional e, depois, fui selecionado para participar nos Jogos Mundiais, em Berlim, em equitação, no nível mais avançado. Fiquei muito feliz. É a primeira vez que vou viajar para fora do País e é a minha primeira prova internacional. Evoluí muito, com a ajuda de toda a equipa, a quem sou muito grato.
Depoimento recolhido por Joana Loureiro