Era uma vez um pequeno país, que era também um país pequeno. Tão pequeno que nele não havia espaço para falar, pensar ou falar aquilo que se pensava. Tão pequeno que nele não coube um rapaz que queria falar, pensar e falar aquilo que pensava.
Não lhe restou que deixar o pequeno país e, aos 18 anos, rumar a Bruxelas. Vivendo como exilado político, estudou pintura e gravura e pertenceu a uma companhia de teatro de rua.
Foi então que, em 1974, uma revolução feita de flores, poesia e sonhos acabaria por trazê-lo de volta ao seu pequeno país, onde seria o responsável pela criação, ainda nesse mesmo ano, de uma das companhias de teatro mais prolíficas dos tempos vindouros.
A história de João Brites (JB) e do Teatro O Bando merece um começo teatral. É uma narrativa que, em 2024, celebra 50 anos, os mesmos da democracia que a tornou possível.
Sentado na atual sede de O Bando, no Vale dos Barris, em Palmela, defronte a 24 figurinos pertencentes a uma instalação que celebra a data redonda do projeto que criou, JB conta como, quando chegou a Portugal, há 50 anos, decidiu reunir os amigos “das lides revolucionárias”, aqueles que tinham “a preocupação de associar o comportamento político ao teatro” e procuravam que este “fosse uma arma de intervenção, como dizia o José Mário Branco”.
Primeiros anos
No princípio eram poucos, “seis ou nove”, entre eles Cândido Ferreira, que vinha do teatro operário de Paris, e Horácio Manuel, que vinha da Alemanha. Convictos de que “a política não está só associada ao partido, nem só ao comportamento social comunitário”, mas “também se encontra inscrita dentro do próprio modo de fazer o Teatro”, os membros de O Bando instalaram-se em Sintra, entre a capital e as aldeias rurais da zona saloia.
“A relação com a vivência real, com as pessoas que não têm acesso preferencial à cultura dita erudita interessou-me desde sempre”, confessa JB.
Inspirados pelos ideais marxistas, decidiram apostar nas novas gerações para, à sua maneira,“influenciar a forma de pensar, de desenvolver um espírito crítico, assumindo a ficção como algo de objetivamente interessante e indispensável”. Era um teatro (também) para crianças, mas nunca infantil ou simplista.
Iam a escolas primárias, às vezes a coletividades, faziam animações todos os sábados, nas quais levavam “os miúdos da escola às coletividades”, explorando não só o imaginário de diferentes gerações como o de diferentes regiões do país. “Não imitávamos o que se fazia na tradição popular, usávamos essa sabedoria como trampolim para a nossa própria imaginação”, explica JB, revelando que, perante as soluções artísticas que ia encontrando de norte a sul de Portugal, em celebrações como o enterro do bacalhau ou a serração da velha, ficou “muito entusiasmado”.
A relação com a vivência real, com as pessoas que não têm acesso preferencial à cultura dita erudita interessou-me desde sempre
joão brites – encenador
À medida que o entusiasmo inicial acalmava, aumentou a exigência artística. Se no início a estética era “um pouco naif”, com o passar do tempo os cenários, adereços e figurinos utilizados em cena iam-se tornando cada vez mais complexos, até porque a notoriedade da cooperativa teatral aumentava a olhos vistos.
As máquinas de cena
Depois de Sintra, O Bando rumou a uma quinta ocupada em Meleças, em 1976, passou por sedes dispersas em Lisboa, entre 1977 e 1983, fixou-se oito anos no Teatro da Comuna, em 1984, e nove no espaço Estrela 60, em 1991, sem nunca deixar de levar os seus espetáculos a zonas mais isoladas do país.
Com a itinerância no seu ADN, a companhia precisou de cenários que se transformassem e ajudassem a contar as histórias. Foi assim que nasceram as famosas máquinas de cena, determinantes no discurso cénico do grupo, objetos escultóricos explorados pelos atores em todas as suas dimensões e comparáveis a personagens, capazes de criar tensões e sentimentos em palco.
Entre as mais memoráveis conta-se o trono criado para Afonso Henriques (1983), o qual, conforme a posição em que se encontrava, poderia sugerir um berço, um castelo, uma sé ou até uma cama. Muitos recordar-se-ão também do Rinoceronte mecânico que fechava a Peregrinação da Expo98, a nau de 500 quilos de Trágico e Marítimos (1984) ou o Carrodebóis de Montedemo (1987), equipado com um órgão de oito tubos, um comando musical em madeira e um conjunto de móveis.
O Torga foi muito difícil de convencer e foi memorável vê-lo a assistir ao espetáculo, já doente, e vir, no fim, agradecer e sair emocionado
joão brites – encenador
Foi também graças à itinerância, e a um país com muito menos auditórios e cineteatros do que hoje em dia, que O Bando foi somando no seu currículo uma miríade de espetáculos em locais inusitados onde JB e os seus atores representaram, “confundindo a realidade objetiva, como o barulho de cães a ladrar, do vento, da chuva ou de carros a passar, com o próprio espetáculo”.
Particularmente notória foi a representação de Os Bichos (1991), de Miguel Torga, nas ruínas da igreja do Convento de São Francisco, em Coimbra. “Estava um frio imenso, os atores quase nus, cobertos de barro como se fossem esculturas, uns bidons com chamas dentro da própria igreja, ovelhas reais nas últimas cenas. O Torga foi muito difícil de convencer e foi memorável vê-lo a assistir ao espetáculo, já doente, e vir, no fim, agradecer e sair emocionado”.
Construir imaginários em Palmela
Apesar das boas memórias, JB assegura que não vive no passado, preferindo caminhar com os olhos postos no futuro. Talvez tenha sido com esse espírito que, em 1999, ao passar pela pocilga abandonada que é a atual sede de O Bando, tenha decidido que estava na hora de “mudar de vaso”, largar o pequeno espaço da Estrela 60 e passar a estar sediado em pleno Parque Natural da Arrábida, na encosta da Serra do Louro, numa propriedade de cerca de 80 hectares.
O espaço, conta JB, era inusitado e apelava à “construção de imaginários”. Tal e qual como as propostas artísticas do grupo teatral. É precisamente nele, envoltos pela neblina das encostas, por oliveiras, figueiras, trilhos ziguezaguiantes e com uma vista única para o castelo de Palmela que conversamos com JB.
Um pequeno grande paraíso de criatividade, onde técnicos, atores, produtores e cooperantes transcorrem os seus dias, num ambiente propício à reflexão, criação artística e aprendizagem.
E Palmela, afinal, nem fica assim tão longe. Como sublinha JB, “há muita gente que até prefere afastar-se da confusão. Sabem que aqui, além do espetáculo, podem ficar a conversar, ninguém os vai meter na rua, porque tem de fechar a porta”.
A dimensão convivencial desenvolvida paralelamente aos espetáculos do Teatro O Bando tem ganhado, sobretudo no espaço de Palmela, uma importância cada vez maior.
“Neste lugar damos muita importância ao modo de acolher o público e à nossa própria investigação. Quando não há espetáculo, vamos para a serra criar”, acrescenta JB, recordando divertido o primeiro espetáculo feito nesta sede.
Convidámos a vizinha da frente e eu só pensava, ‘ai jesus o que é que vai sair daqui’, mas o engraçado é que, com nus ou sem nus, ela saiu como entrou, nada chocada com aquilo. Às vezes também somos nós que somos preconceituosos em relação às pessoas
joão brites – encenador
Corria o ano de 1999, Palmela “parecia ser a 300km de Lisboa” e JB “estava com medo da opinião dos vizinhos”, uma vez que levaria a cena A Porca, a partir do romance Truismes, de Marie Darrieussecq, espetáculo no qual, além de nudez, decidira incluir porcos reais, que circulavam livremente enquanto o público assistia, dentro dos alvéolos da antiga pocilga.
“Convidámos a vizinha da frente, a dona Lurdes, e eu só pensava, ‘ai jesus o que é que vai sair daqui’, mas o engraçado é que, com nus ou sem nus, ela saiu como entrou, nada chocada com aquilo. Às vezes também somos nós que somos preconceituosos em relação às pessoas”.
“Não percebi nada, mas arrepiei-me todo”
As pessoas, para quem, desde o início, O Bando nasceu, cresceu e representou. As pessoas que são essenciais na construção das fantasias propostas em palco e que têm sido envolvidas no projeto, sobretudo desde que este ganhou a casa de Palmela.
Recorde-se, por exemplo, o espetáculo Pino do Verão, um evento comunitário cíclico, idealizado e produzido pelo Bando, de 2001 a 2011, no Miradouro do Castelo de Palmela, que poderia ser definido como algo entre uma romaria popular moderna e um concerto épico.
“Fazíamos um espetáculo com poemas de Eugénio de Andrade, que falavam do prazer do verão e das paixões, o qual chegou a contar com mais de 100 músicos a tocar no miradouro do castelo. Pela primeira vez, as bandas do concelho, entidades musicais com mais de 150 anos, reuniram-se todas para tocar a mesma música”, recorda JB.
A festa comunitária, que chegou a dar aso a comentários como “não percebi nada, mas arrepiei-me todo”, culminava no desenterrar de “diabretes”, atores que representavam os povos opressores e oprimidos de cada ano, e no seu julgamento.
Sem nunca minimizar ou infantilizar o que dizemos, fazemos um esforço para que seja acessível a uma grande diversidade de pessoas, ligando, paradoxalmente, a elevação artística a uma coisa mais popular
joão brites – encenador
É este “arrepio”, transversal a gerações e classes sociais, o que O Bando procura desde o primeiro dia. “Sem nunca minimizar ou infantilizar o que dizemos, fazemos um esforço para que seja acessível a uma grande diversidade de pessoas, ligando, paradoxalmente, a elevação artística a uma coisa mais popular”.
E ainda que muitos anos tenham passado desde o longínquo outubro de 1974, o compromisso para com a arte da representação, a dimensão política que esta pode ter numa sociedade e a prática de um teatro que procura levantar perguntas, provocar reflexões e desinquietar através do poder da fantasia, mantém-se.
E, até ao final de outubro, celebra-se através de um programa rico (ver caixa) de espetáculos, exposições, colóquios, debates e visitas guiadas.
Programa 50 anos O Bando
Eis algumas das numerosas propostas que o Teatro O Bando preparou para festejar os seus 50 anos
Debates
Escrita | dramaturgia n’O Bando (17 out, 15h)
Representação | atrizes e atores n’O Bando (18 out, 15h)
Colóquios:
ensinar É aprender – sobre pedagogia (19 out, 15h)
escutar É ver – sobre a ocupação da TSF (20 out, 15h)
estar É ser – sobre genéticas (26 out, 15h)
passar É ficar – sobre crítica (27 out, 15h)
Passeio filosófico
Utopia Concreta (17-20 out e 24-27 out, 19h-21h)
Espetáculo
liberaLinda (19, 20, 26 e 27 out, 17h)