Trata-se de olhar tudo em volta, de estar atento, pensar. A música de Pedro Lima não hesita perante a complexidade do mundo, de estar ciente dele, das muitas realidades que o fazem, de as refletir, nem tão pouco de seguir em frente. A música de Pedro Lima tem a sinceridade das coisas vitais.
Talkin(g) (A)bout my Generation é o seu álbum de estreia e também o nome da composição que o abre, a primeira de cinco a fornecer desde logo a ‘chave’ do que vem a seguir. A peça nasce “de uma necessidade de partilhar algumas ideias […] sobre o mundo contemporâneo”, escreve Pedro Lima nas notas de apresentação. “Não estou honestamente interessado em avaliações qualitativas ou juízos morais sobre aquilo que está certo ou o que está errado. Deixo isso para os outros”, prossegue, para afirmar mais à frente: “Estamos sem volante há algum tempo, não sei se o recuperaremos outra vez; mas, afinal de contas, que importa? Esta obra é uma reação a tudo isto, é uma aliteração musical e também uma estória que procura combinar o drama com o humor.” Assim é.
Pedro Lima nasceu em Braga há 30 anos. Estudou com Paulo Bastos no Conservatório Calouste Gulbenkian, na cidade natal, com Luís Tinoco, na Escola Superior de Música de Lisboa, com Julian Philips e Julian Anderson, na Guildhall School of Music and Drama, em Londres. Estreou cedo as primeiras obras, como “Sopro do Côncavo”, na Casa da Música, no Porto, e “Once Again Eternal Goodbyes”, em Berlim, em 2015. Foi premiado em 2016 por “(…) e tu, de mim voaste”, obra então estreada pela Orquestra Gulbenkian. Em 2018, compôs “Theatro – Um Ensaio Geral”, com Francisco Fontes e Diogo Martins, para o centenário do Theatro Circo, em Braga, e dois anos depois apresentou “Reel Woman”, na capital britânica. Foi Jovem Compositor em Residência na Casa da Música, em 2019, compositor associado dos Estúdios Victor Cordon, em Lisboa, no ano seguinte, e compôs para o projeto Ópera na Prisão: Traction (O Tempo Somos Nós), que se estreou na Gulbenkian, em 2022. É interpretado em salas de concerto dentro e fora de Portugal, do Milton Court Theatre, em Londres, ao Grande Auditório da Gulbenkian, da Casa da Música, à Konzerthaus de Berlim.
“A sua música procura explorar universos sonoros próprios de um meio eclético, adjacente a alguém que cresceu a ouvir música eletrónica, hiphop e fez parte de uma banda de rock progressivo”, lê-se na biografia que acompanha o álbum de estreia. “A composição dita ‘erudita’ revelou ser a tela em branco de perfeitas dimensões, e lá se têm materializado uma série de ‘investigações’ tímbricas, harmónicas, estruturais. Nas suas partituras manifestam-se ideias singulares que assumem diferentes formas e expressões que variam mediante o contexto onde pretendem existir.”
É o que se encontra em Talkin(g) (A)bout my Generation, para soprano, orquestra de câmara e eletrónica em tempo real. Estreada pelo Remix Ensemble em 2019, a obra desenvolve-se numa articulação perfeita com o libreto de Gareth Mattey, escritor britânico com quem Pedro Lima tem colaborado desde os anos de Londres. A música tem tudo em conta, cada palavra, cada sílaba, cada gesto, cada imagem, num corpo poderoso: “Há um fogo! Onde? Que importa?”, interroga. “O fim súbito aproxima-se por certo”, num tempo de “venda e compra de desastres em saldos”, num tempo em que tudo e todos estão “exaustos, apenas exaustos”.
Como se fosse um filho, para piano, violino, violoncelo e eletrónica, de 2023, segunda peça do disco, resulta de uma encomenda da Miso Music Portugal no âmbito da exposição “A Guerra Guardada – Fotografias de Soldados Portugueses em Angola, Guiné e Moçambique (1961-74)”, com curadoria de Maria José Lobo Antunes e Inês Ponte, que esteve patente no ano passado no Museu do Aljube, em Lisboa. Estreada então, no festival Música Viva, pelo violinista Vítor Vieira, o violoncelista Filipe Quaresma e a pianista Elsa Silva, a obra toma por referência a história de uma das “fotos faladas” da mostra, em que as imagens da guerra eram acompanhadas por testemunhos gravados. Neste caso trata-se da história de uma criança perdida, que é “adotada” temporariamente por um soldado português, em Moçambique. As memórias do ex-militar acompanham toda a obra e encontram representação em três secções: a primeira dedicada à relação de confiança que se estabelece entre ambos, a segunda, mais viva, sobre o quotidiano da criança no quartel, e a derradeira, nostálgica e meditativa, sobre o final comovente da história.
O impacto desta obra exige tempo de respiração, o que a seguinte, “(eu diria que nevava)”, permite. Composta em 2021 para saxofone e voz, assenta num poema de Maria Afonso. O vaguear implícito nas palavras concretiza-se na música, que chega mesmo a assumir um caráter programático em alguns dos momentos. A interpretação é de Luís Salomé e a voz da soprano Catarina Carvalho Gomes.
“Three Questions from a Lover to a Saint”, para vibrafone, megafone e eletrónica em tempo real, foi estreada em 2020 por Miquel Bernat. À semelhança da peça de abertura do disco, conta com libreto de Gareth Mattey, que a apresenta como “uma cena de teatro musical […] sobre o poder queer e sensual patente no martírio de São Sebastião”. A obra nasce de uma narrativa imaginária criada a partir da lenda do santo e divide‑se em três partes, correspondentes às perguntas que lhe são feitas: “Estás vivo?”, “Dói-te?” e “Quem fez isto?”. Cada pergunta traduz-se numa “questão musical”, desenvolvida num discurso fluído e intenso, evidenciando “a fragilidade, a delicadeza, mas também a violência” do drama.
O álbum encerra com “new beliefs”, de 2023, para guitarra solo, ampliando a dimensão sonora do instrumento de forma inaudita. A peça abre com acordes que sugerem o dobrar de sinos. “Sabíamos que a obra seria gravada na Capela da Imaculada Conceição de Braga, um espaço sagrado, onde o lado mais belo da arquitetura e da carpintaria contemporânea se fundem num contexto religioso”, escreveu Pedro Lima sobre a obra. “Além deste pormenor narrativo ser representativo da ideia de ‘nova crença’ pelos meios da nova e refrescada arquitetura, este local oferece ainda um contexto acústico absolutamente sublime onde a guitarra, frágil por definição, ganha um espírito expandido que procuramos captar.” A interpretação é de Daniel Paredes.
“(eu diria que nevava)” e “Three Questions from a Lover to a Saint” foram também gravadas na Capela da Imaculada Conceição, pelo engenheiro de som Hugo Romano Guimarães.
No início do ano, Pedro Lima estreou uma deliciosa bem humorada “Dance Suíte”, no concerto inaugural de Aveiro – Capital Portuguesa da Cultura. A abordagem deverá estar presente no seu próximo álbum, segundo uma entrevista recente do compositor, disponível no ‘site’ da Miso Music Portugal, na qual adianta ainda estar a trabalhar em duas óperas a estrear em 2025 e 2026, numa peça para ensemble, a apresentar no próximo ano, e no espetáculo de dança “Clementina”, entre outros projetos, alguns de caráter comunitário.
Nisto de olhar o mundo, “haverá sempre matéria para impulsionar a criação, e a música revela-se particularmente pertinente em contextos adversos”, afirma Pedro Lima, nessa entrevista. “Imaginando que o futuro poderá trazer consigo desafios, prevejo que nesse contexto a música e arte se revelem como ‘armas’ ainda mais poderosas na sua inegável capacidade para sensibilizar, educar, refletir e porventura curar as feridas que possam, ou não, surgir pelo caminho. […] Enquanto houver vida haverá sempre música e haverá sempre arte, uma vez que são parte basilar da nossa essência e não teremos como renunciar a algo tão identitário. Na busca pela beleza, sempre”.