“É muito complicado para mim definir-me, mas se há uma coisa que eu me sinto é artista”. As palavras saem confiantes da boca de Leonor Baldaque (LB).
Tão confiantes quanto a certeza de que viver “à margem das convenções burguesas”, mergulhada na “enorme liberdade” inerente a uma vida “diferente da que a maioria das pessoas leva”, é a única forma de existir que faz sentido.
A comunhão profunda que, através da arte, seja ela qual for, estabelece com passado, presente e futuro, é alimento mais do que suficiente, assegura, para compensar a solidão inevitável a uma alma que, ou está a criar, ou está a saltar “constantemente de descoberta em descoberta”.
Não é de admirar, portanto, que, após ter dado provas no cinema, enquanto atriz de Manoel de Oliveira, e na literatura, com dois romances publicados, em França pela Gallimard e pela Verdier e em Portugal pela Quetzal, tenha descoberto recentemente, com uma boa dose de espanto e profunda alegria, uma forma totalmente nova de pensar o Mundo e as “infinitas possibilidades da vida”.
Essa forma chama-se música. Não era um terreno totalmente novo para a artista, que na adolescência havia estudado oito anos de violoncelo e três de piano, mas revestiu-se de novas cores graças à guitarra, instrumento que LB aprendeu a tocar há três anos e que acaba por acompanhar a sua voz nos dez temas de A Few Dates of Love, álbum de estreia lançado na Casa da Música, no Porto, e apresentado a 9 de junho, na Feira do Livro de Lisboa.
A criação de A Few Dates of Love, assegura, foi “uma espécie de relação imediata” com a expressão poética em inglês e com as melodias.
“Quando me sentei à guitarra, havia um terreno já muito habitado, já muito rico. Penso que todos os anos que eu tinha passado a estudar música, ou ouvir música e a ler poesia inglesa vieram ter comigo, de repente, e fizeram com que eu escrevesse tantas canções tão depressa”, sublinha.
Tal como no seu último romance, Piero Solidão – lançado em 2020, em francês pela Verdier, e traduzido para português pela editora Quetzal, em 2024 – o álbum soa a declaração de amor: à poesia, à arte, ao vento que sopra, trazendo e levando memórias de todas as vidas que a artista habitou ao longo dos seus 47 anos, ao “pensamento turbulento e silencioso” dos artistas, às ideias que se erguem “todas ao mesmo tempo, para se pousarem com o ruído que o criador ouve”.
Na vida, como na arte, move-a o amor à criação. Até porque nascer para criar, seja de que forma for, não é ofício, é vocação. Porém, para exercer uma vocação, ou uma “vontade”, como lhe chamaria José Saramago, é preciso saber aproveitar as circunstâncias.
Vistas de fora, as de Leonor parecem ter sido ideais. No sangue correm-lhe ainda genes de uma avó grande escritora [Agustina Bessa Luís] e de uma mãe (Mónica Baldaque) também pintora, escritora e curadora museológica.
Ainda assim, LB assegura não saber o que é palmilhar um caminho criativo sem obstáculos. É que a vida e o que fazemos com ela, para o bem e para o mal, é muito mais do que o sangue que nos corre nas veias. E, desde cedo, aprendeu a construir um mundo todo seu.
“Lutei por absolutamente tudo o que consegui fazer até hoje. Por vezes são lutas tirânicas, porque, quando somos exigentes e ambiciosos, o trabalho da criação é uma aventura enorme”.
Primeiros anos
A “aventura enorme” teve início no Porto, há 47 anos, e, desde então, o destino parece ter sido “encontrar a própria voz”. Para lá chegar, desde cedo LB muniu-se de mapas feitos de histórias, lidas e inventadas, de poesia, de uma profunda relação com a Natureza e com a escrita de Virginia Woolf e James Joyce, junto da qual “queria chegar”.
“É muito comum as pessoas pensarem que a minha avó foi uma influência, mas a verdade é que era uma pessoa distante, pertencia à vida dos adultos, algo que me era muito estranho e, como tal, a vida da minha avó também”, recorda.
Esse mundo estranho dos adultos era povoado de certezas, de respostas, de direções, algo que “desde muito pequenina” LB pressentiu não ser o solo onde deitaria as raízes do Futuro. Desejava uma vida nas margens, uma vida de artista, longe “do centro, do consenso, do que ele diz ou tenta impor”.
Apesar de, na infância, ainda não saber “que formas tomaria essa grande aventura”, desconfiava já que andaria sempre a par e passo com a Literatura, lugar onde passou mais tempo e no qual se sente “de base, em casa”.
O fascínio começou cedo, aos sete anos, quando recebeu uma antologia de poemas de João de Deus. “Foi a primeira vez que me deparei com a poesia e percebi o mundo. Percebi tudo. Foi uma enorme descoberta, uma espécie de revelação chegar à conclusão de que se podia falar do mundo em verso, em rima e com frases sucintas”.
O momento terá sido de tal forma transformador que parece ecoar, 36 anos volvidos, nas páginas de Piero Solidão, onde escreve que “um corpo de artista pressente certos gestos que fará, mas não conhece a sua forma exata, a sua intenção, nem o seu resultado”.
À lista de gestos premonitórios junta-se a relação de longa data com a música. Aos dez anos já ia “literalmente a todos os concertos de música clássica que havia no Porto”, era fã de ópera e das sinfonias de Mahler.
E, aos 12, convencida de que não sabia cantar, apesar de ser fã das canções dos Beatles e de Simon & Garfunkel, e dos poemas musicados de Bob Dylan e Leonard Cohen, começa a estudar violoncelo, “o instrumento que diziam ser o mais parecido com a voz humana”.
Ao violoncelo seguiu-se o teatro, no final do liceu, e o estudo de línguas e literatura, na faculdade. “Não havia uma forma de arte que não me interessasse, que não me chamasse de certa maneira”. A chegada ao mundo do cinema deu-se quase por acaso, aos 18 anos, durante uma conferência, no Porto, na qual Manoel de Oliveira lhe disse que estava à procura de uma atriz para um personagem e perguntou se gostaria de fazer cinema.
“Fizemos uns testes de voz, leitura, umas fotografias e, passados uns meses, comecei a minha enorme aventura com ele, que duraria muitos anos. Foi maravilhoso, foi absolutamente incrível”. Em 1998, com apenas 19 anos, LB estreava-se ao lado de Irene Papas em Inquietude.
Ao longo dos 10 anos seguintes, trocou o Porto por Paris e entregou-se por completo à essência desse “mundo onde queria viver”, à liberdade de ser “apenas Leonor”, às inúmeras possibilidades artísticas espoletadas pelo cruzamento das diferentes vidas e pessoas que povoavam o plateau.
Em 2003, é nomeada uma das Shooting Stars europeias pela European Film Promotion e, em 2009, recebe o prémio de Melhor Actriz da Fundação Gestão dos Direitos dos Artistas (GDA) pela participação em A Religiosa Portuguesa, de Eugène Green.
Longe de afastá-la da escrita, o cinema reforçou o desejo antigo de publicar um romance. E enquanto encarna Fisalina, Sylvia, Ela, Camila, Vicenta ou Sílvia no grande ecrã, a “Leonor do Manoel” nunca deixa de escrever nem de procurar “uma voz própria”.
A procura acaba por afastá-la dos ecrãs em 2009, quando decide deixar de ser “um objeto nas mãos de um cineasta que nos vai impondo a sua visão de nós próprios”, para ir atrás “exclusivamente da paixão pela escrita”.
Trocando o português, língua na qual havia já começado vários romances, sempre inacabados, pelo francês, encontra, por fim, o idioma capaz de expressar a visão do mundo que lhe arde dentro, e publica pela prestigiada Gallimard, em 2012, o seu primeiro romance, Vita – La Vie Légère.
“Foi um caminho muito longo. Nunca consegui chegar a nada que me agradasse em português e, mesmo em francês, só dez anos após ter começado a escrever é que tinha a primeira pagina do meu romance”, revela a autora.
Viver na margem
Talvez por vivê-lo tão intensamente, o processo criativo acabaria por ser o protagonista do segundo romance, Piero Solidão, editado em França, pela Verdier, em 2020, e em Portugal, pela Quetzal, em abril passado.
Mais do que uma história, o relato, que sabe a carta de amor, escrita para ser lida por quem a encontrar, é inspirado nos quatro anos que, após ter deixado o cinema, LB passou em Roma.
E quem é Piero? É o passado e o futuro, o espelho no qual a narradora reconhece as várias formas de amor que povoam a sua vida e a sua forma de criar: o amor à arte dos grandes mestres, neste caso Piero della Francesca, autor da Madonna del Parto e dos frescos da Capella Bacci , e o amor a uma figura masculina cujos gestos, pensamentos, fúrias e paixões parecem ter na alma da narradora um efeito sísmico semelhante ao espoletado pelos frescos do quattrocento.
Nas ruas de Roma como nas vielas de Arezzo descobre-se o que significa “estar em Piero”, um estado de espírito semelhante ao de um êxtase contemplativo, uma coleção de “momentos de graça” pautados pela paz que apenas os que vivem nas margens, como LB sempre procurou fazer, conhecem.
Descrevendo a intensidade das cores dos frescos de uma igreja ou do olhar de um homem, a autora imortaliza a essência dos instantes em que, a sós com uma guitarra, uma paisagem ou uma folha e uma caneta, está “em lado nenhum”. É “o único mundo que conta, o da criação”.
A menina de sete anos que, há quatro décadas, estava “em Piero” perante os versos de João de Deus, é sem dúvida a mesma que, num corpo 40 anos mais velho, continua a organizar o mundo “sob a forma de um poema, de uma ideia para um romance”.
Na “solidão habitada”, de que necessita para criar, vivem todas as conversas que tem com o Mundo. Dela nascem os versos cantados ao som da guitarra, as palavras inscritas em Vita – La Vie Légère, os pensamentos partilhados em Piero Solidão.
Calar a voz da criação é impossível. “Às vezes até que me apetecia, para encontrar uma espécie de paz”, comenta LB. Mas “é difícil esvaziar o cérebro da vontade de criar”, da mesma forma que é inevitável viver permanentemente inquieta, “de descoberta em descoberta, de paixão em paixão”.
É a sina dos artistas, esses que por terem o Mundo dentro não precisam de mergulhar nele tantas vezes, perscrutando-o a partir da margem, à procura.