A história remonta ao início da década de 1950, quando o pioneiro da ‘folk’ Woody Guthrie morou num dos prédios que ajudaram a fazer a fortuna da família Trump. O racismo de Fred Trump, pai do atual candidato às primárias republicanas, inspirou canções que acabaram perdidas nos arquivos do músico durante mais de 60 anos.
Em 2016, meses antes das eleições que levaram Donald Trump à Casa Branca, o professor de Literatura e Cultura Americana Will Kaufman, da universidade britânica do Lencashire Central, revelava a descoberta feita nos dois anos anteriores nos arquivos do Woody Guthrie Center, em Tulsa, Arkansas.
As canções estão agora disponíveis, interpretadas por músicos e bandas como US Elevator, Missin’Cousins, The New Ash Grove Players, Delila, dos The Last Internationale, Jared Tyler, Ryan Harvey, Ani DiFranco e Tom Morello, um dos fundadores dos Rage Against the Machine e dos Prophets of Rage.
Um programa de ensino de nível superior sobre problemas sociais foi também criado pelo Woody Guthrie Center, a partir do cancioneiro de Woody Guthrie, o músico que escrevera na sua guitarra “esta máquina mata fascistas”, e que é influência assumida por Bob Dylan, como fora antes por Pete Seeger e Ramblin’ Jack Elliott.
“Old man Trump” foi uma das canções descobertas por Kaufman. Datada do início da década de 1950 é o exemplo mais conhecido do conjunto dedicado a Fred Trump, numa investigação que revelou outros inéditos, sempre marcados pelas preocupações sociais de Guthrie.
Estes casos, porém, visam o empresário que em 1927 tinha sido detido num encontro do Ku Klux Klan, e que em 1954 foi investigado por uma Comissão do Senado pelo uso indevido de fundos públicos nos projetos habitacionais, em particular o de Beach Haven, em Queens, Nova Iorque, com custos sobrestimados, à época, de 3,7 milhões de dólares. Entre o final dos anos de 1960 e a década seguinte, Fred Trump foi acusado pela cidade de Nova Iorque, primeiro, e pelo Departamento de Justiça, depois, num processo que visava igualmente o seu filho Donald, não só pelo uso de empréstimos federais em proveito próprio, mas também pelas práticas de racismo na seleção de arrendatários.
A evidência dos factos estava já nos manuscritos de Woody Guthrie, datados de 1950-1952, período em que viveu em Beach Haven. “Old man Trump”, “Racial hate at Beach Haven” e “Beach Haven race hate” denunciam o “ódio racial” que “o velho Trump” incitou. “Tudo o que posso escrever é o que vejo”, disse sempre Guthrie.
O projeto de habitação Beach Haven foi construído para veteranos da II Guerra Mundial. Como tripulante dos navios de transporte de tropas durante o conflito, Guthrie pôde instalar-se aí com a família, em dezembro de 1950. Mas depressa percebeu que veteranos negros nunca conseguiam o contrato de arrendamento a que tinham direito, e saiu do complexo em 1952.
Nos seus cadernos, Guthrie lamentou que aquela não fosse uma comunidade com “um rosto de todas as cores vivas”, em vez das “janelas sombrias e vazias” que tinha em frente. Não tardou a apelidar o bairro de “Bitch Haven”, nem a criar novas letras para novas canções, em que confessava não gostar “da maneira como Mr. Trump” tratava as pessoas, admitindo que tinha “de fazer um pouco mais contra isso”.
“O meu pior inimigo é o meu senhorio que dá o seu máximo para que eu e a minha família vivamos uma vida de ódio racial, apenas porque ele, de forma doentia, escolheu viver a sua triste vida dessa maneira”, lê-se nos manuscritos do músico.
Woody Guthrie acabou por adaptar à realidade imposta por “old man Trump” a sua própria canção “Ain’t got no home”, escrita nos “Dust Bowl Years” da Grande Depressão e das tempestades de areia na pradaria: “Beach Haven é a Torre Trump onde nenhum negro tem lugar. A minha casa não é aqui!”, escrevia Guthrie, afirmando que pagar renda a Trump seria curvar a alma.
Os textos de Guthrie e as diferentes acusações contra Trump estão sintetizadas no ensaio de Will Kaufman “Woody Guthrie, ‘Old man Trump’ e as fundações racistas de um império imobiliário”, publicado na revista The Conversation, em janeiro de 2016, meses antes da eleição de Donald Trump.
O programa de ensino vai no entanto mais longe no cancioneiro do músico, com “o objetivo de abordar problemas sociais, atuais e históricos”. Atravessa quase toda a sua vida, que é também grande parte da história do Século XX americano: Woody Guthrie nasceu em Okemah, no Oklahoma, em julho de 1912, e viveu os últimos anos entre os hospitais de Greystone, em Nova Jérsia, e Creedmore, em Nova Iorque, onde morreu em outubro de 1967, na fase final da doença de Huntington.
O racismo, a emergência da extrema-direita, a queda de fronteiras do setor financeiro e as desigualdades acentuadas nas últimas décadas encontram eco nessas canções, muitas compostas há mais de 70 anos, assim como temas pessoais, mas sempre no contexto de pertença a um lugar e um tempo, com as suas condições de trabalho e sentido de justiça social.
O percurso vai de “This land is your land”, sobre uma “estrada da liberdade” numa terra para todos, a “All you fascists bound to lose”, que ultrapassa os anos da Guerra, a “Pastures of plenty”, elogio ao trabalho de migrantes, e “Deportee”, dedicada aos 28 cidadãos mexicanos mortos na viagem de deportação, que acabaram sepultados sem nome numa vala comum.
Cada uma das canções pode ainda abrir caminho a outras, como “Don’t kill my baby and my son”, sobre o assassínio de duas crianças negras por um bando de supremacistas brancos, ou “You Know the Night”, descoberta sem partitura, mas para a qual Jackson Browne e Rob Wasserman compuseram a música.
O programa de ensino encerra com “The song for Woody”, de Bob Dylan, o músico que visitava Woody Guthrie nos anos de internamento hospitalar, e que sempre assumiu a influência do pioneiro da ‘folk’.
Dylan reconhece que a sua própria voz fica aquém, porque em Woody Guthrie se encontra o coração “de pobres e camponeses, de príncipes e reis”, daqueles que chegam com “a poeira e partem com o vento”: “Hey, Woody, sei que conheces muito mais do que digo”, canta o criador de “Blowin’ in the wind”. E conclui assegurando que, “algum dia, algures no final da estrada”, também gostaria de poder dizer que fez viagens tão duras e reais como as do seu mentor.
O programa curricular toma o nome “Woody Guthrie: People Are the Song”, que é também o título da exposição disponível ‘online’ no ‘site’ do Morgan Library & Museum, em Nova Iorque. O seu percurso conta a história do mundo, da pobreza, da fome, da guerra, das perseguições raciais. É ainda acompanhado por um audioguia que inclui testemunhos do próprio Woody Guthrie e de músicos como Arlo Guthrie, seu filho, Bob Dylan, Billy Bragg, Bruce Springsteen e Steve Earle, evocando muitos com quem se cruzou, como Alan Lomax, Cisco Huston, Leadbelly, Sonny Terry, Pete Seeger, Phil Ochs e Ramblin’Jack Elliott.
Mostra também aqueles que o interpretaram, numa lista de quase 250 nomes, que atravessa toda a música de Bing Crosby a Yo Yo Ma, passando por Cat Power, Don McLean, Donovan, Elvis Costello, Joan Baez, Johnny Cash, Lou Reed, Melanie, Petula Clark, Sheryl Crow, U2 e The Waterboys.
Woody Guthrie “foi o primeiro músico em quem encontrei o reflexo da América que acreditava ser verdadeiro”, afirma Bruce Springsteen no áudio da exposição.